Sabedoria sem doutrina — Religião para ateus, capítulo 1
Você pode não acreditar em milagres para ler isso.
A coisa mais bela que podemos experimentar é o misterioso. É a fonte de toda a verdadeira arte e ciência. […] Nesse sentido, e somente nesse sentido, pertenço às fileiras dos homens devotamente religiosos.
— Albert Einstein
“Ateu” é uma palavra perigosa de se falar — e colocar como título de e-mails. Espiritualidade não só é um tema sério para a maioria das pessoas, especialmente no Brasil, como é um tema sensível. Quem se diz ateu costuma receber duas respostas diametralmente opostas: ou a pessoa que crê acha que o ateu é um idiota por não compreender uma verdade básica do universo — Deus existe, olhe à sua volta — ou a pessoa sente que está sendo chamada de idiota — então você me acha idiota por acreditar nisso.
Richard Dawkins, um dos mais barulhentos ateus do mundo, diz que todo mundo é ateu para todos os deuses do mundo, exceto um. Um cristão não acredita em Ogum, nem Thor, nem Zeus, nem Shiva. O ateu também não acredita em nenhum desses, só coloca mais um nessa lista.
Por isso, acho que Religião para ateus, livro de Alain de Botton que leremos juntos pelas próximas semanas, é interessante para qualquer pessoa, já que o livro não é “Cristianismo para ateus” nem “Judaísmo para ateus”. Todas as religiões têm alguma coisa de valor. E, por mais que os cristãos evitem falar disso, parte do sucesso da religião de Cristo foi saber pegar partes interessantes de outras crenças — tá aí o Natal para comprovar. Até porque o Cristianismo nasce de outra religião estabelecida e documentada, o judaísmo, é sua vocação “inovar”.
Não sou um cara religioso — se você me escuta no podcast, já deve ter percebido. Esta minha posição é mais política do que espiritual: não gosto de ver como a fé das pessoas é usada para ganhos pessoais por líderes religiosos de praticamente todas as denominações do ocidente (e, provavelmente, do mundo). Por mim, você pode acreditar no que quiser, porque eu mesmo não sei de nada. Meu problema é quando o medo humano da morte é usado como ferramenta para alguém se meter na vida dos outros, em nome de uma divindade que nem está aqui para expressar sua opinião. Acho que, se você é contra o casamento gay, basta não casar com gays. Se é contra o aborto, não aborte. Não precisa meter o seu deus nas leis do país ou na minha casa.
Cheguei neste livro porque um tema recorrente na minha cabeça nos últimos tempos é o que chamo de “epidemia do individualismo”. Quando foi que nos “voltamos para dentro” e nos colocamos como centro do universo? O mundo sempre foi um lugar violento, cheio de guerras e doenças — não estou dizendo “antigamente é que era bom” — mas olho em volta e vejo pessoas tentando resolver seus problemas sozinhas, até mesmo aqueles que não conseguem ser resolvidos individualmente.
Um bom exemplo foi mencionado na conversa sobre Neil Gaiman, quando comentei sobre como parece que hoje em dia a única maneira de agirmos como cidadãos é pelo consumo: não compre mais livros do Neil Gaiman ou você apoia a violência contra as mulheres; não jogue o jogo do Harry Potter para não cometer transfobia; não use IA para não destruir a vida dos artistas. Não ande de carro, não coma carne. Coisas que tradicionalmente eram resolvidas em comunidade — “aqui não toleramos este tipo de comportamento” — viraram “se cada um fizer a sua parte”.
Morre a comunidade, a sociedade, não há rede de apoio. Tudo deve ser feito no nível individual. Suspeito que isso aconteça porque nos venderam a ideia de que, da mesma maneira, as glórias serão só minhas, sem dividir com ninguém. Um tempo atrás, cheguei a ouvir uma “dica” de entrevista de emprego de que, ao contar de projetos de sucesso, não era uma boa ideia dar crédito aos colegas — a empresa quer saber o que você fez e, se contou com a ajuda de várias pessoas, não precisa te contratar.
Yuval Harari fala disso em Homo Deus, de como a maior religião do mundo atual é o “humanismo”: os humanos no centro das decisões e da sociedade. Deixamos de perguntar “o que Deus gostaria que eu fizesse?” e passamos a ver as coisas sob a lente do “o que meu coração me diz?”. Ou em Resista: não faça nada, nossa primeira parada aqui no Clube, quando Jenny Odell lembra que até os parques da cidade deixaram de ser pontos de encontro da comunidade e passaram a ser funcionais, ter um objetivo para o sistema produtivo e individual. E, no caso de São Paulo — como bem lembrou o Marcelo Salgado nos comentários —, precisam ser lucrativos. “Como assim tantos metros quadrados que não servem para nada?” O resultado é a bizarrice de termos parques com naming rights.
Quando Nietzsche disse que “Deus está morto”, ele não estava comemorando. Era um alerta de que o iluminismo estava nos levando para o mundo humanista-sem-Deus descrito por Harari anos depois. Nosso sistema social foi nos isolando porque isso era good for business — veremos isso neste livro. Para Nietzsche, a consequência desta morte seria um mundo sem moral. Para mim, é um mundo sem grupo.
Então, no fim dos resumos comentados de Nação Dopamina, após ver todas as armadilhas dopamínicas que o mundo atual nos prepara — da heroína às telas do telefone — li da psiquiatra Anna Lembke que a solução não é nenhuma nova fórmula química que sua profissão costuma receitar. Ela está, veja só, está no grupo, na comunidade, em instituições como o Alcoólicos Anônimos ou clubes e igrejas. Foi quando lembrei de Religião para ateus e decidi que seria a próxima parada do Clube.
Por isso acho Religião para ateus tão importante. Cheguei a pegar o livro para ler no já distante ano de 2018, uma semana antes de me demitir do Facebook. Não cheguei nem no fim do capítulo 2, afinal de contas, 2018 foi um ano movimentado, mas agora acho que é um sinal de que eu já estava buscando algum sentido além do divino na religião.
Com ou sem Deus, temos muito o que aproveitar em religiões de todo o mundo. O primeiro capítulo — vamos ver daqui a pouco — chega a reclamar de ateus que rejeitam tudo que possa vagamente lembrar Deus, mesmo coisas que não precisam de nada divino para existir. Os nomes dos capítulos já nos dão uma boa ideia: comunidade, gentileza, educação, ternura, arte, arquitetura…
Espero que você goste desta jornada e que participe nos comentários com sua visão que, muito provavelmente, vai ser diferente da minha.
Com vocês, Religião para ateus.
Capítulo um: Sabedoria sem doutrina
A pergunta mais enfadonha e inútil que se pode fazer sobre qualquer religião é se ela é ou não verdadeira — no sentido de ter vindo dos céus ao som de trombetas e de ser governada sobrenaturalmente por profetas e seres celestiais.
Alain de Botton começa de forma direta: este não é um livro para quem acredita em milagres, anjos ou em santos que levitam. É um livro para quem não acredita — mas que, mesmo assim, sente que talvez a religião tenha algo a oferecer. Não no que diz respeito a Deus ou à vida após a morte, mas no modo como as religiões lidam com o cotidiano, com as dores da existência, com a vida em comunidade.
Ele propõe uma mudança de foco. Em vez de discutir se Deus existe ou não, ele lansa a pergunta: sem Deus, o que sobra das religiões que ainda pode ser útil? Sua tese é de que existe muita coisa. Porque, mesmo que a parte sobrenatural tenha sido descartada, as religiões ainda carregam práticas e ideias que ajudam a lidar com dois problemas permanentes: como conviver com os outros e como enfrentar o sofrimento.
Num mundo ameaçado por fundamentalistas religiosos ou seculares, deve ser possível equilibrar uma rejeição da fé e uma reverência seletiva por rituais e conceitos religiosos.
A crítica ao ateísmo moderno é que, na pressa de se livrar de doutrinas ultrapassadas, acabamos jogando fora ferramentas que poderiam ser valiosas. Sermões, rituais, arquitetura, festividades, peregrinações, arte religiosa, leitura em grupo, canto coletivo — tudo isso foi abandonado como se estivesse contaminado pelo cheiro da religião, quando, na verdade, pode ter valor mesmo para quem não acredita.
De Botton fala de sua própria trajetória. Cresceu num lar ateu, “filho de dois judeus seculares que colocavam a crença religiosa num nível similar ao da existência do Papai Noel”. Mas, na vida adulta, ele se deparou com uma “crise de fé”. Começou a perceber que havia algo nessas práticas religiosas que o atraía. Ouvir Bach, ver uma pintura renascentista ou andar por um templo budista não o fazia acreditar em Deus, mas despertava algo que ele não conseguia ignorar.
É como entrei pela primeira (e única) vez na Catedral de Notre-Dame de Paris, anos antes do incêndio. O ambiente escuro e o coro gregoriano me geraram a famosa sensação de conexão com algo maior, mesmo que eu soubesse o tempo todo que não acredito neste algo maior. Ao mesmo tempo, as duas pessoas que estavam comigo (que manterei no anonimato) ficaram fazendo piadas e estragando totalmente o clima.
Eu jamais hesitei na minha certeza de que Deus não existe. Eu simplesmente fui libertado pelo pensamento de que pode haver uma maneira de me relacionar com a religião sem precisar endossar seu conteúdo sobrenatural — uma maneira, para colocar de forma mais abstrata, de pensar em Pais sem perturbar minha respeitosa memória do meu próprio pai.
Assim, de Botton começa a defender uma ideia central do livro, a de que dá para ser ateu e ainda se interessar pela religião — ou melhor, pelas estruturas que as religiões criaram para lidar com a vida. A fazer uma espécie de engenharia reversa. Olhar para o que as religiões fizeram bem e tentar adaptar essas práticas para o mundo secular.
Isso exige uma certa… ousadia. Porque a religião, por séculos, foi ótima em se apropriar de tradições e dar a elas uma nova roupagem. O cristianismo, por exemplo, como já citei antes aqui e no quarto episódio do podcast, foi um que pegou rituais pagãos de inverno e transformou no Natal. Ou a ideia epicurista de uma vida em comunidade e criou os monastérios. Mas, hoje, os ateus tendem a evitar essas práticas como se estivessem “manchadas”. De Botton propõe o contrário: por que não recuperar essas ideias, limpá-las da parte sobrenatural e ver o que pode ser reaproveitado?
O desafio, então, é como “descolonizar” essas práticas. Como separar aquilo que é útil e humano das instituições que se apossaram delas. Por exemplo,
as melhores partes do Natal — convivência, comida, pausa, rituais — não tem nada a ver com o nascimento de Cristo. A festa precede o cristianismo e poderia ser aproveitada mesmo sem fé — que é como fazemos aqui em casa.
De Botton sabe que essa abordagem vai incomodar os dois lados. Religiosos podem achar ofensivo esse jeito de “pegar só o que interessa” das religiões, como se fosse um restaurante por quilo — que é, curiosamente, como descrevo a religiosidade brasileira. “Cristo? Claro, sempre. Reencarnação? Pô, tem que ter, vou botar aqui no canto do prato. E um galho de arruda pra afastar mau-olhado!”
Já ateus mais militantes podem ver na abordagem do livro uma fraqueza, uma concessão perigosa. Mas ele insiste que negar tudo que venha da religião é empobrecer a vida secular à toa. A rejeição à autoajuda é um crime do qual sou culpado. Muitos anos antes de Cristo, Sócrates e Confúcio tentavam entender o que é “ser humano”, mas hoje céticos como eu torcem o nariz chamando de “motivação barata”, como se apenas a racionalidade fosse resolver essa barra que é viver.
As religiões tiveram um impacto profundo porque conseguiram unir teoria e prática, filosofia e arte, ética e estética, espiritualidade e comunidade.
Tampouco este livro foi escrito para defender uma religião específica. Quer vasculhar esse grande depósito que são as religiões em busca de ferramentas que possam ser úteis hoje, num mundo que perdeu a fé, mas não deixou de ter problemas. A proposta é abrir mão do dogma, mas reaproveitar a sabedoria. Porque, mesmo que Deus esteja morto, as perguntas que nos fizeram inventá-lo continuam vivas. E seguem esperando por respostas, ou ao menos por rituais que nos ajudem a conviver com elas.
Resgatar parte do que é maravilhoso, tocante e sábio em tudo o que não mais parece verdadeiro.
Agora é com você
O Clube acontece nos comentários. Diz o que você achou e como se sentiu.
Como você se classifica religiosamente? Qual seu prato no restaurante por quilo?
E sua família, qual a posição religiosa? Como isso te impactou na resposta acima?
Você consegue separar os rituais religiosos da fé? Já participou de algum ritual sem acreditar, mas sentindo que ele tinha valor?
Que práticas religiosas — com ou sem crença — você acha que fazem falta no mundo atual?
Qual foi a última vez em que você sentiu que estava diante de algo “maior que você”? Foi em um contexto religioso ou não?
Como você vê a ideia de “reciclar” tradições religiosas para o mundo secular? Faz sentido ou parece oportunismo?
Você sente que o individualismo moderno enfraqueceu seu senso de pertencimento a alguma comunidade?
Do que você sente mais falta: comunidade ou rituais?
Qual seu ritual secular favorito? Você o pratica?
Semana que vem, os capítulos 2 (Comunidade) e 3 (Gentileza).
Até lá,
crisdias
Quando comecei a ler o livro me lembrei de uma conversa com um colega de trabalho uns anos atrás onde ele disse "se tivesse jeito de só participar da comunidade, mas sem as coisas religiosas, eu toparia". Achei engraçado e descabido na época e lendo o livro vi que é justamente o que ele disse.
Sou de uma família protestante e "cresci na igreja" no interior. Até os 20 e poucos anos a "igreja" era um grande definidor da minha vida. Hoje, beirando os 40, eu estou bastante desconectado. Faz bastante tempo que não participo de nada religioso.
Eu acho que fazer parte de uma igreja me expôs, muito cedo na vida, a situações em que dificilmente eu teria oportunidade fora dela: liderar um pequeno grupo de pessoas, aprender um instrumento e se apresentar para uma comunidade, praticar caridade.
Hoje vivo em outro país e o sentimento de me pertencer a uma comunidade me falta mais forte.
Eu gostaria de ver nossa sociedade fazendo uso destes benefícios sem a parte dogmática. Mas penso que, por ter feito parte de um contexto tão religioso, meus traumas me impediriam de separar as duas coisas tão facilmente.
Engraçado, quando pensava em religião sem o “Deus protagonista” sempre me vinha a cabeça o coach e técnicas para influência de massa, tinha um chefe que era envangelico fervoroso, e sua comunicação de pastor hipnotizava o time , mesmo os que não era religiosos, dava pra perceber que isso era uma técnica.
Eu já fui muito dentro da igreja católico e reconheço os arrepios das músicas e do grupo, os debates dos círculos , e todo efeito que causa a igreja no coletivo, estou ateu a algum tempo confesso que não é fácil esta posição também inclusive para passar pelos momentos destas questão da sociedade e da vida , além do sofrimento individual que vive batendo .
Estou muito curioso com os próximos capítulos .