Ensinamos melhor aquilo que mais precisamos aprender.
— Richard Bach
Você acredita que a maioria das pessoas tem boas intenções? Ou acha que todo ato de bondade é motivado por interesse próprio? As pessoas são boas ou, na verdade, só têm medo de serem punidas?
Perguntas como estas são tão antigas quanto a filosofia e hoje este comportamento é chamado de diferentes maneiras: pessimismo e, principalmente, cinismo. A crença de que as pessoas são fundamentalmente egoístas e desonestas — até mesmo em seus atos de bondade.
Semanas atrás escrevi como me esforço para deixar de ser pessimista. Cheguei a chamar esta atitude de covarde. Há pouco a perder quando não se espera muito do mundo. Ou eu acertei minha previsão de que ia dar errado ou me surpreendi positivamente.
Não é por menos. É só olhar o mundo em volta.
Só que ouvindo o psicólogo Jamil Zaki, autor do livro Hope for Cynics: The Surprising Science of Human Goodness1 falar no meu podcast favorito vi — paradoxalmente? — que nunca fui cinicuzão, como sempre achei. Eu acredito nas pessoas, qualquer uma — às vezes isto é um problema.
Eu jurava que era cronicamente cínico, mas Jamil Zaki me fez ver que não. Mesmo nos piores momentos, acredito nas pessoas. Até os sujeitos mais desprezíveis são assim porque alguma coisa, normalmente um trauma, os levou por este caminho — até mesmo estes nomes que você pensou aí. Somos levados a acreditar que o outro não merece confiança, talvez porque isso seja “bom para os negócios”, da política aos cliques em telas.
Ao colocar em xeque meu cinismo, lembrei do ex-monge Satish Kumar, que conheci quando a Helena Galante o entrevistou no lançamento da edição brasileira do seu livro Amor Radical. É dele a minha frase do ano de 2024, que ela lansou no final da nossa conversa: amar é aceitar o que é.
O mundo nos empurra na direção do cinismo, mas o monge Kumar e o psicólogo Zaki tentam oferecer uma “cura” para o que consideram um dos males do século. Por caminhos totalmente diferentes, chegam ao mesmo lugar.
É comum acharmos que cínicos são só “realistas inteligentes, que conseguem ver o mundo como é” — visão que, segundo pesquisas, é compartilhada por cínicos e não-cínicos, mas que, pelos estudos de Zaki, nem mesmo é verdade. Ele observou que pessoas cínicas tendem a ter desempenho inferior em testes cognitivos em comparação com não-cínicos. Além disso, eles têm mais dificuldade em detectar mentiras, o que contradiz a crença comum de que o cinismo nos torna mais “espertos” ou difíceis de enganar.
Jamil Zaki explica que o cinismo é apenas uma resposta que geramos ao nos sentirmos ameaçados ou inseguros. É como um escudo protetor contra decepções. “Até aí tudo bem! Pelo sim, pelo não, melhor não”. O problema é que esse escudo não necessariamente funciona e acaba nos isolando de muita coisa boa no mundo.
Piora: o cinismo tem consequências bem reais na nossa vida. Zaki descobriu que pessoas cínicas tendem a ter pior saúde física, menos satisfação com a vida e até menos sucesso na carreira. (🤧) Mas calma, dá pra mudar essa mentalidade. E é aí que entra o monge Satish Kumar ao propor sua grande visão: o amor radical.
Kumar conta que em suas andanças pelo mundo, ele diz a todos: “Eu te amo. Você é muçulmano? Eu te amo. Você é hindu? Eu te amo. Você é comunista? Eu te amo. Você é capitalista? Eu te amo”. Por isso ele insiste que precisamos reconhecer nossa interconexão fundamental com tudo e todos — com o psicólogo Zaki nos mostrando que podemos fazer isso sem precisar virar tilelê. (mas se quiser, pode)
A bondade, para Kumar, é como aquela história do “efeito borboleta”, de que quando uma borboleta bate as asas na China, poderia causar um furacão no Texas — dizem que tem lá seu fundo científico. Cada pequeno ato de gentileza e bondade, cada sorriso trocado com um estranho, cada gesto de confiança, tem o potencial de criar “ondas positivas” no mundo.
Zaki parece concordar com essa ideia de “efeito borboleta da gentileza”. Em suas pesquisas, ele observou como pequenos atos de confiança podem desencadear uma série de reações positivas. Quando confiamos em alguém, essa pessoa tende a se comportar de maneira mais confiável, criando um ciclo virtuoso. E o inverso é verdadeiro: se você já chega com desconfiança, a outra pessoa não se dedica tanto à relação, por mais superficial que seja. Não é esoterismo, é psicologia: nossa expectativa positiva tem o poder de moldar a realidade ao nosso redor.
Um achado do tipo que adoro das ideias de Zaki é a visão distorcida da bondade no mundo. Nas suas pesquisas ele viu que tendemos a nos ver como pessoas boas e bem-intencionadas, mas quando olhamos para os outros, achamos que a maioria não é tão honesta assim. É como se tivéssemos dois pesos e duas medidas: um para nós mesmos e outro para o resto do mundo. Essa diferença entre como nos enxergamos e como vemos os outros pode ser uma das raízes do cinismo. Afinal, se achamos que somos os únicos cidadãos de bem por aí, fica fácil desconfiar de todo mundo.
Um exemplo concreto desse fenômeno vem de um experimento realizado em Toronto. Carteiras com dinheiro e dados dos donos foram “perdidas” pela cidade. Quando perguntadas, as pessoas estimaram que apenas 25% dessas carteiras seriam devolvidas. Na realidade, 80% foram retornadas aos seus donos. E não é só isso: quanto mais dinheiro a carteira tinha, maiores as chances de ser devolvida.
Tanto Zaki quanto Kumar acreditam que existem passos práticos que podemos dar para combater o cinismo em nossas vidas. Kumar, por exemplo, defende a ideia de que simplificar nossas vidas abre espaço para coisas extraordinárias acontecerem. Não é só ter menos tralha, mas sobre descomplicar nossa existência de maneira geral. Menos consumo, mais foco no que realmente importa. Simplificar pode significar dizer “não” para compromissos desnecessários, eliminar relacionamentos, ou até mesmo repensar nossas ambições materialistas. É como estamos vendo no nosso Clube de Cultura: entender que é só nosso tempo que é limitado, mas nossas opções em geral, e tentar ter tudo, fazer tudo, não é apenas insalubre, é impossível.
Outro ponto crucial é a conexão — com pessoas e com a natureza. A epidemia de individualidade prega que é cada um por si, mas estudos e mais estudos mostram que o verdadeiro segredo da felicidade é estar cercado de pessoas. Kumar uma vez fez uma peregrinação a pé da Índia até os EUA (!!!) pela paz. Calma, não estou sugerindo fazer o mesmo. Dá para ir mais na linha do Zaki — um autodeclarado introvertido — que decidiu durante uma viagem de férias conversar com todas as pessoas que encontrasse. Como bom cientista, antes de cada conversa ele anotou como achava que ia se sentir e depois comparou como realmente se sentiu. Spoiler: ele sempre achava que as conversas iam ser piores do que realmente foram. O cinismo é um escudo contra um inimigo que não está lá.
Por fim, é crucial fugir ativamente do negativismo. Procure por histórias positivas, exemplos de pessoas fazendo o bem. Para onde se olha, é para onde se vai. Se ficarmos obcecados só com notícias ruins, é claro que vamos achar que o mundo está acabando — mas em todas as eras da história as pessoas sempre acharam que o mundo estava acabando. Não é para virar um bobo alegre. Eu, por exemplo, me treinei para fechar imediatamente qualquer app de rede social quando um post me irrita. Não é meu like que vai resolver aquele problema, é só engajamento.
Sei que fazer tudo isso não é fácil, falo com tranquilidade. O cinismo muitas vezes funciona como uma proteção contra as decepções da vida. Na entrevista, Zaki cita estudos que analisam pelo mundo a relação entre desigualdade e confiança. Pode ser coincidência mas… Na Noruega e na Suécia, por exemplo, mais de 60% das pessoas entrevistadas acham que devemos confiar “no próximo”. Já na Colômbia, no Brasil e no Peru, menos de 10% pensam assim.
Uma abordagem é apelar para outro ismo: Zaki defende que o ceticismo é como um antídoto para o cinismo. Apesar de muita gente (eu) achar que são sinônimos, ele defende o contrário. Enquanto o cínico já parte do pressuposto de que tudo é ruim, o cético busca evidências antes de tirar conclusões. É uma postura mais racional e realista dizer “eu não sei até testar esta hipótese” do que já assumir qualquer opção — boa ou ruim.
Um exemplo prático dado por ele: se alguém diz a um psicólogo “ninguém gosta de mim”, a resposta típica seria algo como “como você pode provar esta afirmação?” — em vez de, ele brinca, “fale-me da sua infância”. A partir daí a pessoa “mal-amada” poderia fazer um “experimento científico”: convidar dez amigos para um café e observar quantos aceitam. Esta abordagem cética — o famoso ver para crer — nos permite desafiar nossas crenças negativas com fatos, em vez de simplesmente aceitá-las como verdades absolutas.
Satish Kumar tem uma visão interessante sobre o cinismo: ser cínico é como desistir antes mesmo de tentar. É como se disséssemos “ah, não vai dar certo mesmo, então pra que me esforçar?”. Mas o monge argumenta que essa atitude não só nos prejudica individualmente, como também impede mudanças positivas no mundo. Ele costuma dizer que “se você quer mudar algo, você precisa ser otimista”. Não é aquele otimismo bobo de achar que tudo vai dar certo magicamente, mas uma escolha consciente de acreditar na possibilidade de mudança. “Tá, mas e a ação, Cris? Só ficar sentado pensando pensamentos otimistas não vai mudar muita coisa.”
Kumar acredita que o otimismo funciona como combustível para a ação. Afinal de contas, quem é que vai se dar ao trabalho de plantar uma árvore se acha que o mundo vai acabar amanhã? O pessimismo pode até parecer mais “realista” às vezes, mas Kumar afirma que a realidade não é fixa — ela é moldada pelas nossas ações, que por sua vez são motivadas pela nossa visão de mundo.
Se é assim, ser otimista não é ser ingênuo. É dar uma chance para que as coisas melhorem.
Por hoje é só
Não se esqueça que sexta-feira temos mais um encontro no Clube de Cultura!
Cuidem de si, cuidem dos seus. Até a próxima.
crisdias
Algo como “Esperança para os Cínicos: A Surpreendente Ciência da Bondade Humana”.
Uma das minhas postagens preferidas por aqui. Me identifiquei demais, visto que nunca consegui deixar de ser aquela pessoa que acredita que tudo vai dar errado até o último minuto (e se não deu, é porque não acabou ainda). Ruim demais quando a terapeuta fala que o nome disso é ansiedade e não intuição... 🫠