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Como perdoar?
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Como perdoar?

Perdoar é mais do que um milagre.

Neste episódio do Boa Noite Internet, eu te convido a encarar uma verdade desconfortável: perdoar não é esquecer, nem “superar” — é se jogar no caos de admitir que a dor existiu e mesmo assim escolher continuar. Vamos falar sobre culpa, orgulho, revolta e esse milagre improvável de dar uma nova chance, para os outros e pra nós mesmos. Uma reflexão sem manual de instruções, mas com muita história, filosofia e aquelas perguntas que a gente evita fazer.

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Ato 1 — Jimmying

Boa noite Internet, boa noite Brasil. Eu sou o crisdias.

Semana passada, a gente acabou de ver aqui em casa a segunda temporada da série Shrinking, da Apple TV+ — que pelo que vi aqui no Brasil se chama “Falando a Real” e em Portugal é “Terapia Sem Filtro”. A série estava na fila aqui já tem um tempo e, mês passado, sentamos pra ver e as duas temporadas até agora se foram em um mês.

Shrinking é o que eu chamo de “Ted Lasso misturado com Ruptura” — duas outras séries da Apple. Tá, a parte de Ruptura eu estou forçando a barra, mas é só porque o personagem principal, nesse caso um cara chamado Jimmy, interpretado pelo Jason Segel, o Marshall do How I Met Your Mother, o personagem principal ficou viúvo recentemente, um ano antes do primeiro episódio, também em um acidente de carro como o Mark Scout, e não está sabendo lidar com isso muito bem.

Já a comparação com Ted Lasso é bem óbvia, porque, assim como Jason Segel, os outros dois produtores de Shrinking trabalharam em Ted Lasso: o produtor Bill Lawrence e o roteirista Brett Goldstein, que você conhece pelo nome Roy Kent.

E é justamente nessa de “juntar os caquinhos”, sair dessa, get your shit together, como eles falam lá onde a série se passa, que acontece a história da primeira temporada. Não só o Jimmy, o personagem principal, mas todos os seus amigos. Especialmente todo mundo que o Jimmy deixou de lado no ano em que ele ficou totalmente desgraçado da cabeça pelo luto, tipo a filha e o melhor amigo. E depois de 10 episódios, ele meio que consegue, nem sei se isso é spoiler, é claro que alguma coisa dá certo. Ele consegue mudar de fase no luto, com a ajuda dos amigos que fizemos no caminho. Tudo isso com várias risadas, porque afinal de contas, é uma série de comédia. É de rir, gente. Quer dizer, na maior parte do tempo…

Já na segunda temporada, com 12 episódios, o último foi ao ar na véspera de Natal de 2024, o tema claramente é perdão. Todos os personagens são colocados em situações em que precisam perdoar. Abandonos, promessas quebradas, amizades destruídas, passados que precisam ser encarados, ou um futuro que com certeza vai ser problemático pra um dos personagens que eu não vou dizer qual, mas que o nome do ator começa com H e termina com Arrison Ford.

Perdão.

Assim… Eu não me vejo como um cara rancoroso, que precisa aprender a perdoar. Outro dia, uma amiga falou que não é boa em guardar dinheiro, mas rancor, ah, isso ela guarda que é uma beleza. Eu não sou uma dessas pessoas, eu deixo pra lá, eu até esqueço. Ao mesmo tempo, eu não perdoo real oficial, eu não viro e falo “eu te perdoo”. Eu só falo “tá tudo certo”, e sigo, porque acho que ficar remoendo o passado não leva a nada, mesmo. Mas a série me botou pra pensar se eu realmente consigo me libertar da história ou da pessoa que precisa ser perdoada.

Uma das coisas que essa segunda temporada me fez pensar estava na atitude de alguns personagens, que é mais ou menos assim: a gente só pode, só consegue perdoar quando para de doer? Perdoar é falar “ok, superei, não dói mais”? Porque… assim… tem coisa que nunca para de doer. Então, essas coisas não têm perdão?

E, pior ainda, se a gente sabe que errar é humano, que todo mundo faz coisas erradas — a começar por nós mesmos — por que é tão difícil perdoar? Eu não tenho todas as respostas — quem me dera, isso aqui está longe de ser o tratado final sobre perdão, mas eu queria dividir com você o que fui descobrindo.

Ato 2 — Quem inventou o perdão?

Eu confesso que ainda fico chocado em ver como certas coisas da sociedade que, pra mim, são básicas, nem sempre existiram. E não estou falando de coisas como Wi-Fi ou esgoto nas casas. Na primeira temporada do Boa Noite Internet mesmo, no episódio “como ser uma princesa”, eu contei de quando a infância foi “inventada”. É, porque essa visão que a gente tem de criança hoje em dia, nem sempre foi assim. Por muito tempo, as crianças eram mini adultos, ou força de trabalho — ou até… seres maus que precisavam ver o caminho da bondade pelas mãos (e palmatórias) dos adultos, o que é bem o contrário do que a gente tem hoje, onde as crianças são a materialização da pureza e da bondade, o futuro promissor.

Enquanto eu lia tudo que eu via pela frente por conta desse episódio aqui — provavelmente coisas demais — eu descobri que o perdão é uma dessas coisas. Olhar pra alguém que fez alguma coisa ruim e dizer “tudo bem, eu te perdoo”, pra mim, deveria ser uma coisa universal e eterna, né? Mas não. Especialmente no ocidente, o perdão foi um conceito revolucionário que, literalmente, mudou o mundo. O nome do startupeiro que desruptou tudo você deve conhecer. Jesus de Nazaré.

Até ele chegar e sair caminhando pelas águas, o normal era “dente por dente, olho por olho”. Na Grécia e na Roma antiga, a visão era a da “justiça”. Se você me causou mal, você também merece sofrer. É simples. É… justo, o princípio da retribuição. Não tinha essa de “virar a outra face”. Pelo contrário, você mostrava sua força retribuindo na mesma moeda ou pior. Existia até uma certa pressão social: se você não respondesse à altura, acabava visto como fraco.

Existia perdão? Claro. Tinha, por exemplo, a clemência romana, onde um prisioneiro de guerra podia ser solto pelo general ou imperador. Mas a clemência não era um perdão do jeito que a gente pensa hoje. Era só o chefão mostrando que era tão poderoso, tão acima de tudo que ia poupar a vida daquela pessoa. Era um ato de condescendência, não era compaixão. O Julio César mesmo era conhecido como um imperador clemente, mas isso no fim era só um reforço da sua autoridade total: só ele podia perdoar, porque só ele tinha o poder de punir.

Nos mitos gregos, os deuses e heróis também não eram muito chegados ao perdão. É só ver a história do Prometeu, que chegou a ser aliado de Zeus em algumas histórias do Mitologia Grega Cinematic Universe, mas rouba o fogo pra dar aos humanos e é mandado pro alto de uma montanha, tendo seu fígado bicado por uma águia todo dia. Pra sempre? Não. Só por trinta mil anos. Ou o Sísifo, colocado pra empurrar uma pedra morro acima pra sempre.

Até o Deus do Velho Testamento não era tão paz e amor assim, é só ver as histórias da Torre de Babel, de Sodoma e Gomorra, ou das pragas do Egito. Tem perdão no Velho Testamento? Tem, inclusive, a tradição judaica do Yom Kippur — o dia da expiação, o mais sagrado para os judeus —, que Jesus seguia porque, né? ele era judeu. Mas a visão geral de perdão ainda era de que ele precisa de Deus perdoando, de preferência com sacerdotes fazendo a negociação, em um dia especial — como quando Moisés conseguiu liberar a barra do pessoal que fez um bezerro de ouro no que pode ser considerado o primeiro Yom Kippur da história. Perdoar é divino — ou para quem foi nomeado pelos deuses.

Então chegou Jesus e mudou a ordem das coisas. A Hannah Arendt, uma filósofa alemã de origem judaica que sobreviveu ao Holocausto e escreveu bastante sobre perdão, mostra no livro “A condição humana” como o perdão cristão é revolucionário. Ela fala de como o Novo Testamento explica que não é pra se perdoar porque a gente precisa “imitar Deus”, fazer como ele faria. É o contrário. Ela fala “se cada um, no íntimo do coração, perdoar, Deus fará o mesmo”. Deus se inspira na gente.

Esse era um perdão radical demais pra 2000 anos atrás. Jesus perdoava geral. Pecadores, prostitutas, cobradores de impostos que trabalhavam pros romanos — justamente as pessoas que a sociedade tinha decidido que não mereciam perdão. Jesus defendia que “ninguém está além do perdão”. E ele não perdoava só os “arrependidos” — ele perdoou até os ladrões do lado dele na cruz, ou… todo mundo, literalmente, o planeta todo de uma vez só. “Perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. E no Sermão da Montanha ele fala que a gente tem que amar os inimigos, não é pra amar só quem é igual e trata a gente bem — porque aí é fácil, até eu consigo.

Mas… Se é assim… Por que o catolicismo é famoso por ser a “religião da culpa”? Por que “culpa católica” é essa expressão famosa? Eu sei bem o que é isso, fui criado em família católica, sou zero religioso hoje em dia, mas a culpa está lá, sempre de olho, não sai de mim. Quem é cristão é culpado de nascença, o pecado original, ao mesmo tempo que Jesus morreu pelos nossos pecados, até o das pessoas que ainda nem tinham nascido na época dele e as que já tinham morrido e estavam no inferno — sim, eu perguntei isso pra minha professora de catecismo. Se Jesus já deixou tudo perdoado, por que a gente sente tanta culpa e acha que não é digno desse perdão?

Pra mim, parte da explicação está nessa parte do nome da igreja… católica, apostólica… romana. Apesar de Jesus ter nascido e feito a sua carreira ali na região da Judeia-Palestina, a Igreja é romana, ela fura a bolha quando chega um cara de fora, Paulo de Tarso, São Paulo, aquele que escrevia cartas pros corintianos, trazendo uma coisa mais romana, mais global pra visão daquele carpinteiro judeu.

E isso meio que dura até hoje. Jesus ensinou a amar ao próximo e a perdoar, mas parece que os cristãos atuais tem um pouco de dificuldade de perdoar quem não é igualzinho a eles. É ira de Deus pra lá, ira de Deus pra cá… O perdão só acontece quando o pecador abraça totalmente o Jisus lifestyle.

É por essas e outras que outro filósofo alemão, o Nietzsche, aquele do bigodão, tinha uma visão bem crítica sobre isso. Ele achava que, na prática, o perdão cristão virou só mais uma ferramenta de opressão, de um jeito que não é muito diferente do Júlio Cesar, que perdoava só para mostrar o quanto era poderoso. Afinal de contas, eu sou tão pecador, mas tão pecador que o Filho de Deus precisou morrer pra perdoar os meus pecados. É uma dívida impagável. E todo mundo precisa ser grato por ele morrer sem nem a gente ter pedido. Se antes eu estava no “saldo devedor” da moral porque fiz alguma coisa errada, agora eu estou em dívida eterna porque o cara não só morreu, ele ficou lá na cruz, sofrendo, mas ainda assim! perdoando todo mundo. Assim, a qualquer momento a Igreja pode virar e dizer “pô, Jesus morreu por isso aí?”.

É o perdão como forma de controle.

Ato 3 — Os dois milagres

Perdoar são dois milagres. Quem disse isso foi a filósofa americana Agnes Callard, que eu descobri em um dos meus podcasts de entrevista favoritos, o Ezra Klein Show.

A Agnes Callard fala disso em um ensaio chamado O paradoxo do pedido de desculpas, em inglês. Ela começa contando um caso que ela chama de idiota, quase infantil: um amigo que desconvidou ela de uma festa. Pô, que mané idiota. Que cuzeta esse amigo. Mas enfim, ela continua amiga do cara, mas de vez em quando o assunto volta. E ela ainda se irrita.

Mas tudo bem, maturidade, ela quer parar de se irritar. Mas não consegue, pelo menos não sozinha. Ela precisa que ele peça desculpas. Mas não qualquer desculpa. Ela imagina ele dizendo “ah é, desculpa”, como quem quer resolver logo — e isso só piora a raiva dela. O que ela quer é uma desculpa sincera. Um pedido que, ao mesmo tempo, reconheça o erro e mostre arrependimento. Mas isso é quase impossível.

É aí que entram os dois milagres.

Quem errou precisa dizer: “eu fiz isso, fui eu”. E, ao mesmo tempo, falar: “mas eu não sou mais essa pessoa que fez isso”. Você reconhece o erro e depois “desreconhece”. Reconhece e se afasta. Assume o que fez e diz que faria diferente. Você tem que assumir o erro como algo que foi, sim, escolha sua… mas também deixar claro que, olhando agora, não é mais o tipo de coisa que você defenderia nem repetiria. É como dizer: eu fiz, mas não faria de novo. E me dói ter feito.

Aí vem o segundo milagre. Se um já era difícil…

Porque, mesmo que o pedido de desculpas seja perfeito — e raramente é — ele não garante nada. O perdão depende do outro lado, é o famoso salto de fé. Por isso, perdoar é o segundo milagre: quem foi ofendido precisa reconhecer que a pessoa fez uma coisa ruim… e ainda assim decidir que ela não vai mais ser definida por isso, que ela é mais do que aquilo, apesar daquilo.

É condenar e absolver ao mesmo tempo. Reconhecer que foi bem ruim, mas que… tudo bem, aquilo que aconteceu também não é a história completa.

O problema de pedir desculpas é reconhecer que a gente errou? Não necessariamente. A Agnes Callard fala de como é fácil falar dos nossos vacilos com uma terceira pessoa — ela dá o exemplo de ter sido grossa com um amigo e contar para a irmã. Moleza. “Eu estava cansada, estressada, falei o que não devia, errei”. A irmã nem precisa perguntar, ela já sai contando. Porque até aí tudo bem, porque a irmã não está analisando se as desculpas são sinceras — se aconteceu o primeiro milagre. A irmã não precisa perdoar a Agnes Callard, não precisa decidir se ela se arrependeu mesmo. Pedir desculpas não é uma conversa. Ela compara com um vestibular, daqueles bem difíceis.

Pra me desculpar, eu tenho que admitir que fui eu quem fez aquilo, porque senão não ia ter nada pra se desculpar; mas eu também tenho que rejeitar o que fiz, senão eu nem ia estar me desculpando pra início de conversa.

Eu tenho que apresentar o que fiz como uma coisa que na hora parecia certa e lógica, que não foi acidente. Fazia sentido, tem uma explicação. E aí… Dizer que, olhando de fora, pelos olhos da “vítima”, aquilo que fiz foi inaceitável. Entendeu porque é zoado falar “desculpa a quem ficou ofendido”? — que é tipo o pior pedido de desculpas possível, está no Guinness Book, pode ir lá conferir. Porque isso é dizer que se ofender foi só uma escolha da pessoa e que você, naquela situação, ia achar ok. Pedir desculpas é dizer “se eu fosse você, eu não me perdoaria”. Então, não depende se a pessoa ficou ofendida ou não.

Ainda assim… por mais que a gente fale, reconheça, prometa, compense… Pedir desculpas é só um dos milagres. Para me perdoar, você precisa reconhecer meu erro pra logo depois me absolver desse erro. Fim, a história termina aqui, vamos seguir em frente, a nossa relação não precisa ser só isso, eu te amo por vários outros motivos.

É como disse uma vez o escritor americano Lewis Smedes: “Perdoar é libertar um prisioneiro; e descobrir que o prisioneiro era você.”

Uma vez, minha filha mais nova ainda não tinha nem 10 anos, ela deu um daqueles ataques de criança com sono, que a gente sabe que é sono, só vai dormir, essa coisa que você está reclamando nem existe. Então eu gritei com ela, que aí foi dormir chorando.

No dia seguinte, eu fui lá e pedi desculpas. Eu estava certo e ela errada? Acho que se a gente fosse em um tribunal, o veredito ia ser que sim. Ela é que tinha que me pedir desculpas, eu preciso ensinar uma lição pra ela. Fora que, se eu deixo ela fazer tudo, vou estar criando o quê? Uma criança mimada, que não vai saber como lidar com dificuldades quando for mais velha. Eu não tô aqui pra ser seu amigo dela, tô aqui pra ser seu pai!

Aí ela me abraçou e contou que quando a nossa cachorra, a Lola, faz alguma coisa errada, ela dá bronca, mas um tempo depois vai lá e pede desculpas. Não é que ela mudou de ideia e acha que a Lola não fez nada de errado. É só porque ela quer parar com aquela história e voltar a brincar com a Lola. E eu fiquei pensando que ela aprendeu sobre perdão 39 anos antes de mim. Que perdoar não é esquecer, perdoar é lembrar diferente.

Ato 4 — O autoperdão

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