📙 A separação acabada — posto, logo existo
Resumo comentado de "A sociedade do espetáculo", capítulo 1.
Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações e, na distribuição dialogada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal.
— Fernando Pessoa
Em novembro de 2025, mais da metade dos influenciadores digitais brasileiros relataram episódios de burnout, segundo a pesquisa “Creators e Negócios 2025” do YouPix. influenciadores que passam o dia criando conteúdo sobre suas vidas — café da manhã perfeito, rotina de skincare, treino matinal — relatam exaustão mental justamente por viver essa performance constante. Marcela Pedraza, que virou influenciadora aos 60 anos, passou por burnout pela fama repentina. Quanto mais mostram suas vidas, menos vivem. Quanto mais trabalham na imagem de si mesmos, mais se afastam de si.
1967, o ano que nunca acabou
No episódio “Pense como um engenheiro; Crie como um artista” do podcast, comentei que minha citação favorita de todos os tempos é do filósofo italiano Ennio Flaiano: “Vivemos em uma fase de transição. Como sempre.”
E o que me fascina nessa frase é que ela foi dita em 1967. Porque a gente olha para 1967 e pensa em tempos mais simples, sem internet, sem redes sociais. Mas foi justamente em 1967 que Marshall McLuhan lançou O meio é a mensagem, que saiu A sociedade do espetáculo do Debord, que o mundo estava, como diriam os jornalistas da época, efervescendo. Os EUA no meio dos movimentos pelos direitos civis, a guerra do Vietnã e a corrida espacial. A Europa com o movimento estudantil. O Brasil nos primeiros anos da ditadura. A China na revolução cultural. E em junho de 67, Israel tomou a Faixa de Gaza na Guerra dos Seis Dias. Pelo menos desde 1967, estamos ansiosos com as mudanças do mundo. A boa notícia é que não estamos malucos sozinhos. A má é que… essa sensação nunca vai passar. Então, o melhor é relaxar e aproveitar o passeio.
Vejo isso também como uma prova de que não foi “a internet que estragou tudo”. É uma jornada bem mais longa, que Debord já estava analisando quando a televisão era a mídia dominante. O espetáculo não começou com o Instagram — o Instagram é apenas o sintoma mais recente.
Sobre o livro e sua estrutura
Guy Debord (1931–1994), filósofo situacionista francês, escreveu A sociedade do espetáculo em 1967, quando a televisão era a mídia dominante. O livro tem uma estrutura diferente do que temos visto aqui pelo Clube: são 221 teses numeradas distribuídas em 9 capítulos. Não é um livro narrativo, não há parágrafos longos de explicação — são aforismos filosóficos densos, escritos em estilo marxista situacionista, com múltiplas referências ocultas a autores conhecidos.
Debord nunca explicou diretamente por que escolheu esse formato, mas a escolha não é acidental. Aforismos resistem à leitura passiva — cada tese exige que você pare, pense, conecte com as outras. É o oposto do fluxo espetacular de informação que o livro critica.
O estilo é descrito como “conciso, econômico, poético, provocativo e difícil”. Debord escreveu deliberadamente para um público pequeno. Em 1988, ao comentar seu próprio trabalho em Comentários sobre a sociedade do espetáculo — um dos apêndices do livro —, ele afirmou que seus textos têm “a segurança de ser prontamente conhecidos por cinquenta ou sessenta pessoas, o que já é muito nos dias que vivemos e quando se trata de questões tão graves”. O objetivo não era criar um best-seller acadêmico, mas sim um instrumento de luta contra a sociedade espetacular. No prólogo para a terceira edição francesa (1992), Debord afirmou com orgulho que o livro não precisava de nenhuma correção desde 1967, e declarou: “É preciso ler este livro considerando que ele foi deliberadamente escrito na intenção de se opor à sociedade espetacular”.
(E aqui estou, trazendo um resumo comentado em um Clube de Cultura. Enfim, a hipocrisdias.)
A estrutura em teses também dialoga com uma tradição filosófica específica. Evoca as teses de Feuerbach sobre religião, que Marx comentou, aforismos de Nietzsche, manifestos de vanguarda artística. Cada tese é ao mesmo tempo análise teórica e provocação política.
Várias são bem pesadas de ler.
Para estes resumos, não vamos comentar todas as 221 teses — o que seria redundante, porque aforismos já são a forma condensada do pensamento. Em vez disso, vou agrupar as teses por conceitos centrais, citar as mais importantes na íntegra (eventuais negritos nas citações foram colocados por mim) e tentar conectar estas ideias para o contexto de 2025.
A tese número um é um dos textos mais citados do século 20:
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação.
O capítulo 1, A separação acabada, estabelece a base de todo o argumento do livro. Debord não está falando de entretenimento ou de um mundo cheio de imagens — está falando de uma transformação na forma como nos relacionamos com a realidade, com os outros e conosco. O espetáculo, para ele, é a vida que se tornou representação. É o momento em que paramos de viver diretamente e passamos a viver por meio de imagens.
Essa “separação” do título do capítulo tem a ver com o rompimento completo entre a vida vivida e a vida representada. Debord diz que chegamos ao ponto em que a experiência direta foi totalmente substituída pela contemplação de imagens dessa experiência. Isso é muito mais do que ver TV ou ficar rolando o feed — é que nossa própria vida se separou de nós mesmos e passou a existir como algo que observamos, produzimos e consumimos como espetáculo. A separação está “acabada” no sentido de consumada, completa. Não há mais volta para a unidade perdida entre ser e aparecer.
Esse capítulo, com 34 teses, explica como essa separação funciona e por que representa a forma mais avançada de alienação humana. Não é apenas teoria crítica abstrata — é uma análise de como a sociedade capitalista avançada transforma tudo, inclusive nossas vidas e relações, em algo a ser consumido como imagem.
Que espetáculo é esse?
Quando ouvimos “sociedade do espetáculo”, pensamos imediatamente em imagens, em telas, em publicidade. Mas logo na tese 4, ele manda:
O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.
Essa é a virada conceitual central. O espetáculo não é a TV, não é o Instagram, não é o cartaz no ponto de ônibus. Essas são apenas suas manifestações superficiais. O espetáculo é uma forma de organização social. É o jeito como passamos a nos relacionar uns com os outros — não diretamente, mas por imagens que mediam tudo.
O LinkedIn pode ser visto como o exemplo supremo. Ele não é apenas uma rede social profissional, é uma plataforma onde sua carreira se torna uma narrativa performática, onde cada conquista precisa ser anunciada, onde o networking acontece por posts emocionados e autopromoção calculada. Você não se relaciona com pessoas diretamente — você se relaciona com as imagens que elas projetam de si mesmas, e vice-versa. Isso é o espetáculo como relação social.
Na tese 5, Debord vai além:
O espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung tornada efetiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objetivou.
O termo alemão Weltanschauung significa “visão de mundo” ou “cosmovisão”. Debord está dizendo que o espetáculo não é apenas um problema de comunicação ou de mídia, é uma forma de ver o mundo que se materializou, que se tornou concreta nas estruturas da sociedade. A lógica do espetáculo — tudo deve ser visto, tudo deve aparecer, tudo se torna imagem — não é um desvio ou abuso. É o próprio modo de funcionamento da sociedade.
Quando uma empresa exige que você tenha “presença digital” para ser contratado, quando um restaurante é escolhido pela “instagramabilidade” em vez da comida, quando fica difícil ir a show de música porque está todo mundo filmando — não estamos falando de efeitos colaterais da tecnologia.
É uma visão de mundo que diz: se ninguém postou, não existe.
Da vida à representação
A tese 1 contém a frase mais famosa de Debord, mas a segunda parte (abaixo, em negrito) é igualmente importante:
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação.
O que significa “tudo o que era diretamente vivido”? São as experiências imediatas, sem intermediários. Conversar com alguém cara a cara. Comer uma refeição sem fotografar. Viajar para conhecer um lugar, não para provar que esteve lá.
Debord está descrevendo um processo histórico: a passagem da vida vivida para a vida representada. Na tese 2, ele detalha:
As imagens que se desligaram de cada aspecto da vida fundem-se num curso comum, onde a unidade desta vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente desdobra-se na sua própria unidade geral enquanto pseudomundo à parte, objeto de exclusiva contemplação.
Essa tese é densa, então vamos tentar desempacotar. “As imagens que se desligaram de cada aspecto da vida” — antigamente, uma imagem era um registro de algo real. Uma foto de família documentava um momento. Agora, produzimos imagens que se desligaram da vida: fazemos coisas para fotografar, não fotografamos coisas que fizemos. A ordem se inverteu.
Essas imagens “fundem-se num curso comum” — o feed infinito, o fluxo constante de conteúdo, o ciclo de notícias 24 horas. E nesse fluxo, “a unidade desta vida já não pode ser restabelecida”. Você não consegue mais voltar para a experiência direta. O mundo falso das imagens virou o mundo onde a gente vive.
Debord chama isso de “objeto de exclusiva contemplação”. Somos espectadores da nossa própria vida. Vivemos contemplando representações — do sucesso, da felicidade, do corpo ideal, da carreira perfeita — em vez de viver diretamente essas coisas.
A inversão da realidade
Uma das ideias mais provocativas de Debord aparece na tese 8:
O espetáculo que inverte o real é efetivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, e retoma em si própria a ordem espetacular dando-lhe uma adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados.
O espetáculo não é ilusão versus realidade, é mais complicado que isso. Ele inverte a realidade, mas essa inversão é real. Você realmente está passando horas por dia produzindo conteúdo, respondendo mensagens, construindo sua marca pessoal. Isso não é falso — você está gastando tempo e energia reais nisso. Está no nome da “carreira”: criador de conteúdo, palavra criticada por artistas que apontam que o sistema transformou filmes, livros, séries, tudo em “conteúdo”.
Mas, ao mesmo tempo, “a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo”. Você não consegue mais viver sem pensar em como aquilo vai parecer, sem se preocupar com a narrativa que está construindo. Hoje visitei a CazéTV em São Paulo e fiz questão de publicar nos meus stories, porque sei que isso manda vários recados. “O Cris é bem conectado.” ou “O que será que ele está aprontando?” (nada, só fui almoçar com os amigos, mas não conta pra ninguém) A experiência real foi invadida pela lógica espetacular.
Calma que piora: “retoma em si própria a ordem espetacular dando-lhe uma adesão positiva”. Não é que você foi forçado a isso. Você compra a ideia, você quer entrar no jogo. Você sente que precisa registrar, precisa compartilhar, precisa provar que está vivendo, fica mal por não “saber se vender”. A própria realidade passou a seguir as regras do espetáculo.
Por isso, Debord conclui na tese 9:
No mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso.
Essa frase parece um jogo de palavras, mas é literal. Num mundo onde tudo se tornou espetáculo, os momentos de verdade — de experiência direta, de vida não mediada — são exceções breves num fluxo dominado pela representação. Você tem um momento genuíno com um amigo, mas ele está cercado por horas de performance nas redes sociais. O verdadeiro virou um momento dentro do falso, não o contrário.
Ser, ter, parecer
A tese 17:
A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em parecer, de que todo o “ter” efetivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua função última.
Debord está traçando três fases:
Ser: Em sociedades pré-capitalistas, a identidade vinha de quem você era — sua linhagem, sua comunidade, seu ofício. Um artesão era um artesão, independentemente do que possuía.
Ter: Com o capitalismo industrial, a identidade passou a vir do que você possui. Você é o que você tem. Status vem de bens materiais. A pessoa é medida pelo patrimônio.
Parecer: No capitalismo avançado, na sociedade do espetáculo, nem o ter basta mais. O que importa é parecer que você tem e, assim, parecer que você é. A imagem do sucesso importa mais que o sucesso real. A aparência de riqueza importa mais que riqueza real.
Essa progressão explica a economia dos influenciadores. Muitos estão endividados mantendo uma aparência de luxo. O influenciador de “lifestyle” não precisa ser rico — precisa parecer rico. O lindo apartamento é decorado com permutas e recebidinhos. A influenciadora fitness não precisa ser saudável — só precisa parecer saudável. E Debord adiciona: “todo o ‘ter’ efetivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua função última” do parecer.
O antropólogo Michel Alcoforado, que pesquisa os ricos brasileiros — e foi o episódio mais ouvido do podcast do Boa Noite Internet este ano, de lavada — explica que no Brasil a riqueza é fundamentalmente uma questão de performance e domínio de códigos. Não basta ter dinheiro. É preciso saber performar a riqueza, dominar os códigos de como os ricos se vestem, falam, circulam. A riqueza brasileira está ligada a poder, acesso e pertencimento — não apenas a dinheiro. No seu livro, ele conta histórias de pessoas com muito dinheiro no banco, mas que não eram aceitas no high society. É exatamente o que Debord estava descrevendo: o ter se transforma em parecer, e esse parecer exige performance constante.
Você pode ter dinheiro, mas se não mostrar, não conta. Pode ter um relacionamento feliz, mas se não postar fotos românticas, as pessoas questionam. Pode ter uma carreira bem-sucedida, mas se seu LinkedIn está desatualizado, você parece estagnado. O prestígio não vem mais do ter em si — vem da capacidade de transformar o ter em parecer.
A alienação do espectador
Uma das teses mais dolorosas do capítulo é a 30:
A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo.
“Quanto mais ele contempla, menos vive” — essa é a equação do espetáculo. Cada minuto gasto rolando o feed é um minuto não vivido diretamente. Mas Debord lembra que o objeto contemplado “é o resultado da sua própria atividade inconsciente”. Não é que as imagens caíram do céu. Nós as produzimos. O influenciador está exausto porque produz o próprio espetáculo que o aliena.
E tem a segunda parte: “quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo”. Você vê imagens do corpo ideal, da carreira ideal, da vida ideal — e passa a desejar essas imagens em vez de descobrir o que você realmente quer. Seus desejos não são mais seus. São desejos espetaculares, implantados pela contemplação constante.
Veja, por exemplo, este story que uma amiga publicou hoje. Só para os close friends, claro:
Sempre que eu vejo um conteúdo muito aesthetic clean girl girl boss vivendo la vida loka com seus vinhos e restaurantes caros me dá uma sensação merda de que minha vida é sem graça. Mas aí eu me pergunto: eu gostaria de ser assim? Tão sem sal pra ser bonito esteticamente online? Acho que não, mas não deixo de pensar nisso.
Ela nem queria ser aesthetic clean girl girl boss vivendo la vida loka, mas rolar o feed faz parecer que é isso que ela quer ser.
A tese 33 completa o raciocínio:
O homem separado do seu produto produz cada vez mais poderosamente todos os detalhes do seu mundo e, assim, encontra-se cada vez mais separado do seu mundo. Quanto mais a sua vida é agora seu produto, tanto mais ele está separado da sua vida.
O influenciador produz conteúdo sobre sua vida, mas essa produção o separa da própria vida. Ele cria cada detalhe — a iluminação, o ângulo, a legenda, o filtro — e justamente essa criação minuciosa o afasta da experiência direta. É um jantar, mas é jóbe.
“Quanto mais a sua vida é agora seu produto, tanto mais ele está separado da sua vida.” A vida virou mercadoria, e como toda mercadoria, se separou do produtor.
O espetáculo como poder
Nas teses finais do capítulo, Debord conecta o espetáculo ao poder. Na tese 24:
O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o autorretrato do poder na época da sua gestão totalitária das condições de existência.
O espetáculo não é apenas entretenimento ou distração. É a forma como o poder se apresenta a si mesmo. Pense na cobertura de eventos políticos, no noticiário econômico, na publicidade corporativa. Tudo isso é o poder se auto-retratando, se justificando, se celebrando.
E Debord insiste: não é uma questão de controle direto ou censura. É que “a comunicação é essencialmente unilateral”. Você pode comentar, pode reagir, pode até criar seu próprio conteúdo — mas precisa fazer isso dentro de plataformas controladas, seguindo algoritmos opacos, sob termos de serviço que mudam sem consulta.
Na tese 23:
É a especialização do poder, a mais velha especialização social, que está na raiz do espetáculo. O espetáculo é, assim, uma atividade especializada que fala pelo conjunto das outras.
O poder sempre foi algo separado, especializado — reis, sacerdotes, burocratas. O espetáculo é a forma mais recente dessa separação. Há especialistas que produzem imagens, especialistas que controlam a narrativa, especialistas que mediam toda comunicação. E essa atividade especializada “fala pelo conjunto das outras” — fala por você, por mim, por todos nós.
A última tese
O capítulo termina com a tese 34, outra famosa:
O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem.
Aqui é a hora de Debord conectar tudo. O espetáculo não é algo externo à economia capitalista — é o próprio capital que evoluiu. Quando o capital atinge esse nível de acumulação, ele não precisa mais se manifestar apenas como fábricas, como dinheiro ou mercadorias físicas. Ele se manifesta como imagem.
O exemplo mais óbvio é o mercado financeiro: trilhões de dólares que existem apenas como números em telas, como fluxos de informação, como especulação sobre futuros imaginados. Mas vai além. Marcas valem mais que seus ativos físicos — a Nike vale muito mais que suas fábricas e estoques, porque o valor está na imagem da marca.
E nós mesmos nos tornamos capital-imagem. Quando você constrói sua “marca pessoal”, quando cultiva seguidores e engajamento, está transformando a si mesmo em capital que se manifesta como imagem. Você virou espetáculo ambulante — e sente-se mal quando vê que não está entregando essa imagem, vai lá e compra um curso online sobre como melhorar sua presença digital.
A separação como projeto
A palavra “acabada” também indica finalização, término. E há nisso uma provocação quase otimista: se a separação está consumada, se chegamos ao limite dessa lógica, talvez seja o momento em que ela se torna visível o suficiente para ser questionada.
O burnout dos influenciadores, a exaustão com as redes sociais, o crescente desejo de “desconectar” e até a preocupação com “AI slop” (o lixo gerado por IA que polui a internet) — tudo isso são sintomas de que o espetáculo pode ter atingido um ponto de contradição. Quando mais da metade dos criadores de conteúdo está em burnout produzindo imagens de vidas felizes, quando a performance constante se torna insustentável, talvez estejamos no momento em que Debord diria: a separação está tão completa que não pode mais se esconder.
Esse é apenas o primeiro capítulo. Debord passa o resto do livro detalhando como o espetáculo funciona, como se relaciona com a história, como organiza o tempo e o espaço, como se manifesta na cultura e na ideologia. Mas tudo parte dessa base: vivemos em uma sociedade onde a vida se tornou representação, onde o verdadeiro é um momento do falso, onde quanto mais contemplamos, menos vivemos.
Se Debord estava certo em 1967, quando a TV era a mídia dominante, o que dizer de 2025, quando cada pessoa carrega um estúdio de produção de espetáculo no bolso?
Agora é com você
Você consegue lembrar da última vez que viveu algo sem pensar em como aquilo ia parecer ou em registrar para mostrar depois?
Quando você posta sobre sua vida, está compartilhando o que viveu ou produzindo conteúdo que vai determinar como você vive?
Tem alguma área da sua vida que você conscientemente não leva para o espetáculo — que você não posta, não performa, não transforma em imagem?
O que você acha da provocação de Debord: será que chegamos num ponto em que o espetáculo está tão completo que finalmente podemos enxergá-lo e questioná-lo?
Dá seu show nos comentários. Opa, peraí.
Nos vemos lá,
crisdias




Esse livro só mesmo com um resumo comentado para conseguir absorver bem o seu conteúdo. É uma leitura muito complexa para quem não tem o hábito de ler textos densos (tipo eu rs).
Estava aqui pensando como o ser "low profile" também é parte do espetáculo, mesmo que você não esteja ali gerando conteúdo pro algoritmo as pessoas se relacionam com essa imagem construída de alguém que não expõe sua vida.
Que bom poder acessar uma leitura tão rica, sendo comentada de forma tão rica também.
Dentro conceito de imagem e espetáculo lembrei do Michel Alcoforado falando que: na ideia de performance constante e domínio dos símbolos, as marcas tem um papel importante: "elas poupam tempo".
Vestir determinada marca, comunica a sua imagem no espetáculo logo de cara.
Tempo e energia economizados num ciclo tão exaustivo, custa caro.
É o Cartier ou o rótulo de vinho exposto na mesa, mesmo que já tenha-se terminado de beber o vinho.
Existe um custo benefício em poupar tempo no espetáculo, afinal ele nunca acaba.