Sua TV passa a Netflix 16?
Não me faça escolher, eu só quero ver TV.
Outro dia, um amigo mandou no grupo de Zap da galera esta foto tirada na casa do sogro, que mora no interior de SP. “Meu sogro está no futuro, já tem a Netflix 16!”.
Esta é uma história de pirataria, mas também de FOMO e a promessa quebrada dos streamings, por que não, um entendimento sobre o preço da comodidade.
O que o sogro do meu amigo tem é algum IPTV pirata, essas caixinhas que “desbloqueiam todos os canais”, mas que, na verdade, são computadores com muito espaço em disco e versões piratas de séries e filmes. A “sacadinha” é que, apesar de ter o catálogo da Netflix e todos os serviços de streaming (inclusive com séries que nem passam no Brasil), este serviço traz uma coisa que deveria significar um modelo antiquado: a programação linear. Ou, se você é da minha geração, como a TV funcionava até outro dia. Você liga e assiste o que estiver passando, um “filme surpresa” — que é como meu outro amigo Fabio Yabu explicou pra filha anos atrás, quando foram para um hotel que não tinha streaming, só os bons e velhos canais Telecine.
As versões piratas dos ‘Robertos Marinhos’ entram nas suas plataformas e criam “canais” enfileirando o conteúdo, seguindo (será?) algum critério de curadoria. Então, dá pra ver um canal “documentários”, como na imagem, mas também um “Seinfeld 24h” ou simplesmente “Netflix 16”, com filmes (espera-se) similares.
Este tipo de consumo, para mim, soa absurdo de cara. A melhor coisa que o vídeo via internet nos trouxe é a possibilidade de ver “o que eu quiser, quando eu quiser”. Lembro de quando nossa mais velha era pequena (a irmã ainda nem tinha nascido) e, no meio de um episódio de Game of Thrones, o pau torando, ela vinha pedir alguma coisa e a gente gritava: “Eu só te peço uma hora por semana pra ver minha série, uma hora, mais nada!!! 😭”. Não tinha pause, se você chegou atrasado em casa já era, perdeu, espera o repeteco em algum horário bizarro. Que bom que agora eu posso ter controle sobre o que vejo, certo?
Não necessariamente. Temos aqui o que o jurista e escritor americano Tim Wu chama de “tirania da conveniência”. Em um artigo para o New York Times, Wu argumenta que a conveniência se tornou o valor supremo da nossa época, decidindo tudo por nós. Depois que você experimenta streaming, esperar um horário marcado para ver TV parece até ofensivo. E isso contamina toda a sociedade. É claro que lavar a roupa na máquina é melhor do que na mão. Mas também gera uma expectativa de roupa sempre limpa e "com cara de nova" que antes não podia existir.
Quando você pode pular a fila e comprar ingressos para shows pelo seu celular, esperar na fila para votar em uma eleição é irritante.
— Tim Wu
Talvez os carinhas do IPTV tenham entendido mais de tendência do que a Amy Webb: a oportunidade de voltar à inconveniência. É porque escolher o tempo todo é exaustivo. A Netflix 16 é a resposta pro “sei lá, eu só quero ver alguma coisa”. Aqui em casa também resolveria o famoso diálogo que você viveu, eu sei.
— O que vamos ver?
— Sei lá, o que você quiser.
— Então tá, vamos ver isso aqui.
— Ah, isso não.
🫠
Mesmo fora da pirataria a conveniência do linear está voltando. Dos canais FAST — “Free Ad-Supported Streaming Television”, canais lineares gratuitos, sustentados por anúncios, o streaming reaprendendo a ser TV, só que com inventário e métrica de internet. E também do “autoplay” do YouTube, especialmente na era onde a telona da TV cresce como principal superfície de consumo da plataforma. Você bota o primeiro podcast para tocar e deixa a vida (o algoritmo) te levar.
É claro que o dono da TV da foto não estava procurando “uma volta à inconveniência”, as pessoas assinam estes serviços porque ficou financeiramente inviável ter todos os canais de streaming — que justamente prometiam ser mais baratos que a TV por assinatura, no processo que outro dia chamei aqui de “esmerdelhamento”. Mas essa não é a pauta hoje. Estou mais interessado nessas coisas que pareciam uma ótima ideia, mas só porque é difícil pensar em todas as consequências.
Precisamos de mais conteúdo, mais opções, ou só curadoria? Eu posso pedir para o ChatGPT escrever o que eu quiser, mas… o que eu quero mesmo? Onde fica o papel da descoberta e da surpresa? Do "eu não sei o que eu não sei", até alguém mostrar pra gente?
Pelas boas práticas da “escrita moderna na Internet” e growth hacking, esta deveria ser a hora de eu amarrar tudo com um grande pensamento, uma lição profissional, uma tendência “a volta do linear!” ou um “call to action”: diga nos comentários… alguma coisa, eu só preciso do engajamento. Não é assim que a minha cabeça funciona. Eu não acho que o dono do canal pirata de IPTV esteja pensando na realidade pós-pós-moderna em um mundo cada vez mais fragmentado onde a atenção é moeda. Talvez seja só uma limitação técnica do sistema dele e a “Netflix 16” seja mais aleatória do que a minha cabeça. Eu só achei genial essa imagem, que, ainda por cima, provavelmente, é muito mais próxima da realidade do Brasil do que uma Apple TV instalada no Itaim.
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