Resumo comentado: A crise da narração, prefácio
Quando tudo é storytelling, nada é storytelling.
Contamos histórias para poder viver.
— Joan Didion
Boas vindas à nossa próxima parada do Clube de Cultura do Boa Noite Internet! Êeeeeeeeeee… Pelas próximas semanas vamos desvendar A crise da narração, de Byung-Chul Han, filósofo coreano que vive na Alemanha desde os anos 1980.
Preciso dizer que estou com medo de sair desse livro em crise! Afinal de contas, trabalho com narrativas e acredito que elas são a principal ferramenta de mudança para o mundo, mas que pouca gente dá a ela o verdadeiro valor. Por isso tenho medo de que Byung-Chul Han diga que estou fazendo tudo errado e destruindo a narrativa, um podcast, uma newsletter, um clube de cultura por vez. 😭
Como falei na mensagem do início da semana, mais do que nunca sua participação nos comentários é fundamental. Sou fã de Han desde Sociedade do cansaço, mas na opinião de muita gente (eu) ele é “denso”, hermético, ou simplesmente difícil. E um dos motivos disso é porque os livros de Han não são teses acadêmicas, mas tampouco são livros para quem é 100% leigo em filosofia.
Assim, ele cita diretamente a tradição filosófica alemã, com aquelas palavras compostas gigantes e conceitos densos. Vejamos esta frase do comecinho do prefácio: “Quando as narrações nos ancoravam no ser, ou seja, quando nos atribuíam um lugar e transformavam o ser-no-mundo em um estar-em-casa, dando à vida significado, apoio e orientação (…) não se falava em storytelling ou em narrativas”.
“Ser-no-mundo” e “estar-em-casa” são conceitos de Martin Heidegger. Aqui estão estes e outros conceitos de Heidegger:
In-der-Welt-sein (ser-no-mundo)
Descreve como existimos sempre em relação ao mundo ao nosso redor, nunca isolados. Não é apenas estar fisicamente presente, mas estar envolvido e engajado com o ambiente e outros seres.
Zu-Hause-sein (estar-em-casa)
Condição em que o ser humano encontra familiaridade e sentido no mundo. É quando as narrativas e rituais transformam o estranho em familiar, criando um sentimento de pertencimento.
Seinsvergessenheit (esquecimento do ser)
Descreve como a civilização ocidental esqueceu de questionar o significado fundamental da existência, focando apenas em objetos e fatos superficiais.
Dasein (ser-aí)
O modo específico de existência humana — estamos sempre “jogados” em um contexto histórico e cultural específico, tendo que fazer escolhas e criar significado.
Neste resumo comentado, preferi usar uma linguagem mais direta. Quando necessário, explicamos os termos técnicos em vez de apenas os traduzir. O objetivo é focar no argumento central do autor: como a era da informação está transformando nossa capacidade de contar e viver histórias.
E quando eu escrevi ali em cima “explicamos os termos técnicos”, no plural, é porque estou contando com a ajuda da IA Claude (um concorrente do ChatGPT) nesta jornada. Foi ele quem escreveu este glossário acima, por exemplo. Parte do tempo criando estes resumos comentados foi perguntando pro Claude: “peraí, deixa eu ver se entendi…”. 😬
Prefácio
Atualmente, fala-se muito em narrativas. Paradoxalmente, o uso inflacionário de narrativas revela uma crise narrativa.
O paradoxo da narrativa é de que quanto mais falamos sobre elas, menos sabemos contar histórias que criam sentido. Empresas contratam consultores de storytelling, políticos disputam narrativas, marcas vendem suas histórias mais do que os átomos que formam seus produtos. Não vamos comprar um detergente porque ele limpa bem, mas porque ele desperta a liberdade da infância (e faz com que lembremos da nossa).
Mas esse excesso de histórias fabricadas mostra que perdemos algo fundamental: a capacidade de criar significado por meio de narrativas naturais. A própria necessidade de transformar a narrativa em objeto de estudo indica que ela não faz mais parte orgânica de nossas vidas.
As narrativas tradicionais davam forma ao mundo ao redor, criando sentido entre pessoas, lugares e acontecimentos. Elas ajudavam pessoas a encontrar seu lugar no mundo e dar sentido às suas experiências. Uma história bem contada transformava o desconhecido em familiar, o caos em ordem. As pessoas não precisavam buscar significado — ele vinha naturalmente pelas histórias passadas de geração em geração, nas conversas ao redor da fogueira, nos rituais compartilhados.
Essa função social das narrativas criava um senso de pertencimento que ia além do simples entretenimento. As histórias tradicionais carregavam em si um poder unificador, capaz de transformar grupos dispersos em comunidades coesas. Hoje, quando empresas tentam recriar este efeito com técnicas de marketing, acabam produzindo apenas uma versão superficial dessa experiência — como tirar uma foto de um momento que já passou.
A religião é uma típica narração com um momento interno de verdade. Ela narra a contingência, evitando-a. A religião cristã é uma meta-narração que abrange cada canto da vida e a ancora no ser.
O cristianismo estrutura o tempo e o espaço através de suas narrativas de várias maneiras. O calendário litúrgico, por exemplo, transformava dias comuns em momentos de significado profundo, criando marcos que organizavam a experiência humana. Cada festa religiosa funcionava como ponto alto dessa história maior, gerando um senso intensificado de existência que ia além do ciclo trabalho-consumo.
Tudo isso se desfez na sociedade atual. “Sem narração não há festa”. O calendário virou uma mera agenda, as festas viraram eventos comerciais. Os rituais, que antes funcionavam como técnicas simbólicas de abrigo e pertencimento, perderam sua capacidade de transformar o estranho em familiar, há “apenas trabalho e lazer, produção e consumo”. O tempo sagrado deu lugar ao tempo do espetáculo, as festas viraram datas para se comprar presentes.
As narrativas nunca são criações de uma pessoa (ou “equipe de criação”). Elas ecoam diferentes forças e atores, o que Han chama de “expressão da tonalidade afetiva de uma época”. Hoje, as “micro narrativas” carecem de gravidade e “momento de verdade”. O capitalismo se apropriou das narrativas e as transformou em produtos. O storytelling virou ferramenta de marketing, carregando objetos comuns com promessas de experiências extraordinárias. As histórias, antes transmitidas de geração em geração, agora são chamadas de conteúdo — curtidas, compartilhadas… e esquecidas no fluxo infinito de informações.
A narração é uma forma de desfecho. Ela constrói uma ordem fechada que cria significado e identidade.
A famosa fogueira onde pessoas se reuniam para contar histórias deu lugar às telas digitais. No lugar de uma comunidade de narradores e ouvintes, surgiu uma community de consumidores solitários. Os anunciantes contratam “community managers”, que são quase animadores de plateia de programas de auditório. Os stories das plataformas sociais não criam vínculos duradouros, apenas promovem e anunciam. “Eles nada mais são que autopromoções pornográficas ou anúncios.” Postar, curtir e compartilhar não narram — consomem.
É assim que compramos, vendemos e consumimos narrativas e emoções. Storys sell. Storytelling é Storyselling.
Para Han, informação e narração atuam em direções opostas. Enquanto a narração transforma o caos em necessidade, a informação multiplica as possibilidades e intensifica nossa percepção do acaso. Esta tensão se conecta com o que vimos Harari discutir em Nexus, no que ele chama de “noção ingênua”: de que informação é o mesmo que verdade e que fatos puros, sem mediação narrativa, bastam para gerar compreensão do mundo.
Mas dados não criam sentido por si. “Estamos muito bem informados, mas desorientados”. O tempo se fragmenta em uma sequência de presentes desconexos, sem a continuidade que só a narração pode tecer. Niklas Luhmann captou esta condição ao dizer que “a cosmologia da informação não é do ser, mas da contingência”, ou seja, nossa visão contemporânea de mundo não se baseia mais em fundamentos sólidos e permanentes, mas em possibilidades sempre mutáveis e incertas.
Ser e informação são mutuamente excludentes. Assim, é inerente à sociedade da informação uma carência de ser, um esquecimento do ser.
A informação não transporta sentido, a narração sim. A vida digital amplificou nossa incapacidade de narrar e escutar. O gesto de deslizar a tela não constrói histórias, apenas acelera a troca de informações. A perda da empatia na era do smartphone sinaliza um problema maior: sem narrativas que nos conectem, perdemos a capacidade de nos colocar no lugar do outro, de dizer “eu te entendo”.
Este vácuo narrativo gera suas próprias distorções. Teorias da conspiração e narrativas extremistas surgem como respostas primitivas à desorientação contemporânea. São tentativas de impor ordem ao caos informacional — quanto mais nos perdemos no excesso de dados, mais atraentes se tornam as explicações simplistas.
Este é o vazio narrativo que marca nossa era digital. O storytelling corporativo não pode reacender a antiga fogueira ao redor da qual as pessoas se reuniam para compartilhar experiências — mas seguem colocando um slide de fogueira nos seus PPTs sobre histórias. No lugar de narradores e ouvintes atentos, nos transformamos em consumidores de conteúdo — sempre conectados, mas cada vez mais incapazes de dar sentido ao mundo que nos cerca.
Essa crise narrativa possui uma longa pré-história. O presente ensaio a investiga.
Agora é com você
Posto o problema do livro e definida que crise narrativa é essa, como estamos? Deixa nos comentários o que você espera deste livro — e se você foi uma das pessoas que votou nele, conta o porquê, vai me ajudar a guiar os resumos comentados.
Concordo com o problema apresentado, mas já estou preocupado com a quantidade de idealização do passado. “Antigamente é que era bom, as pessoas conversavam, agora virou bagunça e devassidão!”. Quem beber, verá.
A seguir, os capítulos “Da narração à informação” e “Pobreza de experiência”, em breve, na caixa postal de todo mundo que é do Clube de Cultura do Boa Noite Internet.
Até lá,
crisdias
Eu admiro você Cris por se dispor a fazer esse resumo de cada capítulo com informações que enriquecem a leitura. Considero os livros do Han difíceis pois não tenho todo esse repertório filosófico. Só de você contextualizar os conceitos do texto antes do seu resumo e preparar o leitor para o restante da obra me traz uma felicidade em saber que não poderia ter escolhido clube de leitura melhor para seguir. Parabéns pelo bom trabalho, ser assinante do Boa Noite Internet e trocar a coquinha zero por esse conhecimento é um prazer :)
Excelente início, Cris! Também votei nesse livro por ter duas coisas em mente: O autor é denso, como dito no episódio do Boa noite internet com o Startup da Real, mas você, Cris, é muito didático e sabe muito bem detalhar cada ponto e explicar tudo de um jeito muito simples.
Sobre o livro, espero dar luz a várias questões e reflexões que por vezes me pego pensando. Um palavra que me chamou atenção foi "empatia". Vejo que cada vez mais as pessoas pedem empatia, mas esquecem do real significado. Talvez tenha relação com o ponto de que estamos cada vez mais conectados à internet do que conectados às pessoas. Valeu!