📙 O que é criatividade? "Inspiração", o começo
Matt Richtel viaja pelo mundo entendendo o que é criatividade.
Você não pode esgotar a criatividade. Quanto mais a usa, mais você tem.
— Maya Angelou
Se você me acompanha por um mínimo de tempo que seja, sabe que eu sou cretino. Cinicuzão. Viro os olhos em desprezo por qualquer coisa, mas especialmente sobre “papo coach” e pseudociência.
Sendo assim, espero que entenda quando eu disser que estive muito perto de mandar um e-mail esta semana avisando que iria cancelar esta edição do Clube de Cultura, porque “Inspiração”, de Matt Richtel, me fez virar os olhos nesse nível, várias vezes.
Eu explico. Logo nas primeiras páginas do primeiro capítulo “de verdade” (que não é introdução, prólogo, etc.), Richtel já me veio com duas pedradas:
Primeiro, chamando Herodes — rei do território da Judeia, como representante (rei cliente) do Império Romano na época do nascimento de Cristo — de “assassino de crianças”, por conta do massacre dos inocentes, quando ele teria ordenado a morte de todas as crianças menores de dois anos em Belém para eliminar o suposto “rei dos judeus” das profecias.
O problema é que o único registro histórico do tal massacre é o evangelho de Mateus. Herodes não era nenhum fofo, mas o consenso entre estudiosos é que esta história está na Bíblia só para ligar Jesus a profecias judaicas — uma narrativa parecida demais com a de Moisés, aquela onde ele vai parar em um cesto encontrado pelo faraó.1
Até aí tudo bem! Mas… alguns parágrafos depois, ele mete essa:
Por volta do ano zero, a Judeia fervilhava com uma energia pulsante […]
Parou, parou. Não existe ano zero. Existe o ano 1 antes e o ano 1 depois. É por isso que o ano 2000 foi o último ano do século 20 e não o primeiro do século 21.
“Ah, Cris, que besteira.” — diria quem não me conhece. Porque “Inspiração” é um livro que promete falar cientificamente da criatividade. E, pior, escrito por um jornalista premiado do New York Times. Só que o livro não tem referências bibliográficas, não cita suas fontes, é tudo na base do “um especialista com quem conversei me disse que…”. A ponto de cometer o pecado mais comum de livros “motivacionais” que é colocar lindas citações dizendo ser de “Albert Einstein”, mesmo quando uma busca simples no Google vai mostrar que não foi ele quem disse coisas como “a criatividade é a inteligência se divertindo” ou “a lógica nos leva de A a B. A imaginação nos leva a qualquer lugar”.
Só que a vida é uma marota. Ainda no primeiro capítulo, cheguei nesta parte:
Pessoas criativas, a ciência nos diz, não apenas enxergam mais coisas como tendem a estar abertas a julgar relevante um conjunto maior de informações do que pessoas menos criativas. Em outras palavras, criadores não têm o hábito de declarar informações como sendo irrelevantes ou absurdas apenas porque não estão de acordo com crenças existentes. Ao considerar um volume maior de informações, criadores têm mais matéria-prima para processar, mais pontos para conectar.
Não tenho “crenças existentes” sobre Herodes, Einstein ou calendários, mas nessa o Richtel apelou para a minha vaidade. Eu sou criativo — é isso o que digo para mim todo dia de manhã no espelho. Então preciso estar aberto a outros pontos de vista. Não para ser convencido de que existiu um ano zero, mas de que talvez este livro tenha ensinamentos importantes sobre como as pessoas encaram a criatividade.
Até porque Richtel e eu concordamos no ponto central do livro: a criatividade não é para poucos escolhidos. Não é “chama divina”, é método e processo. É estudar, entender e, principalmente, prática.
Lembrei também de quando Alain de Botton comenta em “Religião para ateus” que nós, filhos do iluminismo, costumamos torcer o nariz a qualquer coisa que minimamente se pareça com religião — mesmo que não tenha nada de divino, como rituais, gratidão, etc. Não é “racional” nem “científico” comparar a criatividade com a teoria da evolução das espécies — como Richtel faz quando diz que ideias são como mutações genéticas, para o bem e para o mal — por isso devo virar os olhos e jogar tudo fora.
Portanto, aqui estamos. Vou ser criticuzão com o livro, mas também atento a partes que possam fazer sentido. Porque, afinal de contas, criatividade é um dos assuntos mais subjetivos do mundo. Não existe “criatividade” do mesmo jeito que uma pedra ou banana existem. Nós, humanos, é que inventamos esta palavra para descrever, ao mesmo tempo, um processo de trabalho e um estado de espírito.
Richtel chega a tentar definir o que é criatividade nos primeiros capítulos — uma pergunta que costumo achar infrutífera, mas que, por me considerar um colecionador de perguntas, vejo valor, nem que seja para descobrirmos que é uma pergunta sem resposta. (ele tem uma, já digo qual)
Este livro é a história da criação humana — uma sequência contínua de inspirações pequenas, médias e enormes, cujos criadores, quase todos, se perderam ao longo da história.
Sendo assim, vamos (de coração aberto, eu juro) ao livro.
Heresias
Matt Richtel começa contando de quando estava em Jerusalém no final de 2019, dias antes da COVID-19 infectar o primeiro ser humano em Wuhan. A cidade fervilhava com turistas, devotos e moradores. Ali, onde nasceram as maiores histórias já contadas — contando pelo número de leitores —, Richtel começou a questionar um dos mitos mais arraigados sobre criatividade: a imagem do gênio antissocial e isolado, que ele vai analisar na primeira parte do livro.
O que é criatividade? Qual é a importância da autenticidade na criatividade? As pessoas têm vontade de ter ideias criativas? Medo? Qual é o maior inimigo da criatividade? É preciso sofrer para encontrar a voz criativa?
Neste capítulo, Jerusalém surge como um avatar da criativdade, como centro cultural e ponto multicultural no mapa. Nos primeiros anos da era moderna (é aqui onde ele diz “ano zero”), a cidade abrigava meio milhão de pessoas. Judeus, os primeiros cristãos e romanos se reuniam, compartilhavam, debatiam. Richtel conta que pesquisas mostram que a criatividade surge dessa energia coletiva. (Quais pesquisas? Ele não diz. Confia no pai.)
Florença, Harlem, Atenas, Vale do Silício — todos esses caldeirões de inovação compartilham a mesma característica. São lugares onde pessoas se encontram, ideias colidem e a competição feroz se mistura com colaboração intensa. A criatividade não brota do isolamento, mas do encontro.
Inspirado pela guia turística que descrevia Herodes como um homem de mentalidade transcendente, Richtel compara o rei a Steve Jobs, porque ambos foram responsáveis por grandes construções, mas suas contribuições resultaram de séculos de inovação acumulada — o famoso “subir no ombro de gigantes”. O iPhone não surgiu apenas da mente de Jobs, assim como Jerusalém não foi construída apenas pelas mãos de Herodes. Cada inovação se apoia em milhares de pequenas mudanças anteriores. Como mutações genéticas que vão se acumulando até possibilitar que um peixe rasteje sobre a terra ou que um réptil alce voo. Pouco a pouco, pequenas mudanças se acumulam. Em algum momento, elas dão origem à anatomia que se tornará a base de uma asa ou de uma pata.
Richtel faz essa analogia de que a mecânica da criatividade humana é como a mecânica celular de replicação e mutação dos genes — o que me cheira a pseudociência, quase como dizer que a física quântica prova que nossa mente molda o universo. Mas enfim. Analogia, Cristiano. Analogia.
Em cérebros férteis, diz ele, fazemos conexões aleatórias entre ideias. Essas conexões são como mutações que surgem na codificação genética de organismos primitivos. As ideias se materializam, levam a outras noções, que se conectam, se reorganizam. A diferença está no fato de que podemos criar de acordo com nossa vontade. Nascemos para criar.
O poder da criatividade é tal que ele forma e transforma nossa própria compreensão do mundo. A criatividade é, sob essa ótica, a primeira maravilha do mundo de fato. Dela, todo o resto brota.
Somos máquinas de criatividade. Se é assim, a criatividade não pode ser um privilégio de poucos. Ela reside em nossa fisiologia mais primitiva, componente de nossa mecânica de sobrevivência. Então não era só analogia, é realidade físico-química?
Na hora, lembrei de O gene egoísta, onde Richard Dawkins apresentou o termo meme e diz que eles estão para as ideias como os genes estão para corpos físicos — seguindo regras muito parecidas de mutação, evolução e “sobrevivência do mais adaptável”. Dawkins só não diz que memes são como são porque vivem em células. Mas enfim.
Para Richtel, a relação entre inteligência e criatividade também precisa ser revista. Uma pessoa inteligente responde a uma pergunta. Uma pessoa criativa primeiro elabora a pergunta, depois a responde. Falei disso no podcast e este é o tema central da minha palestra sobre longevidade — a “profissão do passado” era ter respostas, o famoso “eu te pago pra saber”. Já a “do futuro” é fazer as perguntas, dizer “não sei” e ir atrás das respostas.
É por isso que, para Richtel, inteligência mediana é suficiente para alguém ser criativo. O que importa são qualidades que podem ser desenvolvidas: disposição, curiosidade, abertura. Uma ótima notícia.
Ele propõe o que batizou de Teoria da Criatividade da Prateleira de Temperos. Assim como um cozinheiro precisa de diversos ingredientes para criar pratos complexos, uma mente rica em experiências — alegria, agonia, empatia, intelecto — faz misturas e combinações com maior habilidade. Pessoas criativas não apenas enxergam mais coisas. Elas consideram relevante um conjunto maior de informações. Não descartam ideias só porque não se encaixam em crenças existentes. Mas criadores só podem ligar pontos que já tenham visto, sentido, experimentado. O repertório cresce por meio de viagens, novas experiências, emoções e desvios da rotina. Ficar vendo as mesmas coisas de sempre no seu feed não vai aumentar sua criatividade, mesmo que pareça que alguns posts são “puxa, não sabia que estava descascando batata errado este tempo todo!”.
Ele também esclarece que a criatividade não é intrinsecamente boa. Conta de como seu motorista de táxi em Jerusalém fazia compras online enquanto dirigia e mostra que o automóvel, o celular, as compras pela internet — criações sensacionais que, combinadas a cinquenta quilômetros por hora na hora do rush, tornam-se potencialmente letais. O modo como as criações serão usadas não pode ser previsto por seus criadores. O cenário fica ainda mais imprevisível à medida que os sistemas do mundo se tornam mais complexos, com uma criação entrando em choque e fundindo-se com a seguinte. A criatividade não tem “opinião” nem viés político. É só um agente de mudança — qualquer mudança.
Nazismo, escravidão, gás venenoso. Alguém, em algum momento, pensou que eram boas ideias. A criatividade é amoral. Seus fundamentos éticos dependem dos valores do criador e de como a criação é utilizada. Algumas inovações se mostram tão poderosas que ainda não é possível dizer se serão mais úteis ou prejudiciais. Armas nucleares, economia movida a combustíveis fósseis, antibióticos — são instrumentos de tal dimensão que sua influência só vai poder ser compreendida daqui a muito tempo.
Portanto, a ideia de que criamos para salvar o mundo também precisa ser questionada. A criatividade tem origem na emoção da inspiração individual. O clichê diz que a necessidade é a mãe da invenção. Richtel corrige: a necessidade é apenas um subconjunto da autenticidade. A centelha individual é o verdadeiro ancestral da criatividade humana. Uma ideia desponta na cabeça como uma possibilidade prazerosa e inédita.
Durante a Crise dos Mísseis de Cuba, Bob Dylan lançou “Hard Rain” com o refrão “vai cair uma chuva forte”. Muitos entenderam que era sobre destruição nuclear. Questionado por Studs Terkel, Dylan esclareceu: “Não é uma chuva atômica. É só uma chuva forte”, um tipo de fim inevitável, e que a frase “pelotas de veneno inundando suas águas” se refere às mentiras que as pessoas recebem das rádios e dos jornais da época.2 As inspirações autênticas permitem que o criador se conecte com outros, mesmo quando essa nunca foi a intenção. Anos depois, às vésperas da pandemia, Dylan escreveria “I Contain Multitudes”. A letra fala de contradições internas: “Eu ajeito meu cabelo e me envolvo em rixas de família”. Um pedante e um valentão, como existe dentro de cada um de nós.
A criatividade não vem de um tipo específico de lugar ou circunstância. Criadores não são de um tipo único. Dentro de nós existem multidões. A cantora e compositora Rhiannon Giddens escreveu uma ópera sobre um muçulmano-africano escravizado, trabalha em um musical com Elvis Costello e compôs uma canção para talvez meu jogo favorito de todos os tempos, Red Dead Redemption 2. Filha de mãe negra e pai branco, cresceu com avós moldados pelo legado da escravidão. Sua realidade foi moldada por contradições: amor e raiva, liberdade e disciplina, cidade e campo, negro e branco.
Quando falei sobre criatividade com outro talento notável, Carlos Santana, o lendário guitarrista, ele fez questão de que eu compreendesse os segredos da felicidade, da satisfação e do sucesso que eram provenientes da forma como ele manejava esse potencial. “O maior câncer deste planeta é que as pessoas não acreditam na própria luz”, disse ele. É o que Santana chama de centelha criativa individual: a luz. “Estamos na era da iluminação, onde podemos deixar esse absurdo de lado”, acrescentou o músico. “As chaves do paraíso advêm de nossa imaginação.”
O processo criativo oferece algo além do produto final. Se você me conhece, já sabe que concordo totalmente com esta visão — e adorei quando Richtel diz que criar “tira um peso das costas” de quem é criativo.
Pesquisas “citadas” por Richtel (mas ele nunca diz quais exatamente, é só “pesquisas apontam”) mostram que criadores têm a oportunidade de compartilhar o que sentem com o mundo sem necessariamente expor partes de si que consideram constrangedoras ou íntimas. Quando as pessoas pensam e criam “fora da caixa”, podem se libertar de sentimentos de vergonha sem revelar a natureza direta de um segredo. A mesma pesquisa argumenta que a criatividade melhora a saúde física ao aliviar o peso psicológico que atrapalha o esforço e o desempenho. Um editor do New York Times descreveu seu cérebro a Richtel como um “triturador de madeira” que precisa ser constantemente alimentado. Ele inventava projetos criativos com regularidade para que o cérebro não “triturasse a si mesmo”. A criatividade pode ser o oposto da destruição do mundo particular de alguém.
O ato de criar também proporciona alívio de uma forma mais primitiva, porque é emocionante e gratificante. Quando as inspirações são autênticas e honestas, elas permitem que o criador se conecte com outros, proporcionando-lhes também uma fonte de alívio. Isso vale na arte, nos negócios, na política. Há momentos em que a honestidade de um criador toca profundamente outras pessoas, mesmo quando jamais foi essa a intenção. A experiência da descoberta e da criação atende a uma necessidade psicológica básica — às vezes o pensamento criativo é útil a uma alma inquieta simplesmente porque proporciona uma atividade ao cérebro, algo para fazer. A criatividade se torna assim um canal para processar emoções complexas e experiências difíceis, transformando o peso interno em algo externo e compartilhável.
Mas o motivo mais básico para resistirmos aos impulsos criativos é primordial: novas ideias assustam. Temos um viés subconsciente contra a criatividade. Veremos isso nos próximos capítulos.
A criatividade define nosso mundo e reivindica o ponto onde a expressão individual encontra o significado e o avanço da sociedade. Muitas atividades exigem que façamos uma escolha entre propósito egoísta e avanço comunitário. A criatividade permite alimentar nossa chama individual enquanto contribuímos para mudar o mundo. Mas não devemos esquecer que vivemos em uma era onde a expectativa de vida aumentou, nossas necessidades materiais foram supridas como nunca, mas a felicidade não cresceu no mesmo ritmo. Talvez o segredo não esteja nos produtos de nossa criatividade, mas no processo.
Agora é com você
Tentei não ser muito duro com Richtel, me diga aí nos comentários se consegui. Também quero saber qual a sua relação com a criatividade? Você se considera uma pessoa criativa? Ou é do tipo que diz “não, não, isso é pros outros”?
A seguir, a história do homem que teve uma ideia considerada louca por seus vizinhos, acreditou nos seus sonhos e virou… o Homem-Canguru!
Nos vemos lá,
crisdias
O próprio nascimento em Belém é controverso, todo o papo de a família ter que ir rapidinho para Belém por conta de um censo romano. Esta história serve para cumprir profecias do Antigo Testamento, que diziam que o Messias viria dessa cidade, tradicionalmente associada ao rei Davi. Era preciso dizer que Jesus era da linhagem de Davi… pelo lado do José, que nem pai de verdade era. Enfim, essa não é a pauta de hoje.
A entrevista foi ao ar na rádio WFMT Chicago em 1963, e é considerada uma das melhores entrevistas do jovem Dylan.
Eu estava animada com este titulo, mas o "revirar os olhos" não foi só seu, Cris.... Tô perseverando na leitura pq comprei o livro e agora vou até o final, mas a promessa do viés científico parece que ficou distante... Tô na parte da menção a Taylor Swift e pra ser sincera, os exemplos não estão me emocionando muito não...