O meio é a metáfora
Resumo comentado, “Amusing ourselves to death”, capítulo 1
Spin do elétron explicado: imagine uma bola girando. Exceto que não é uma bola. Nem está girando.
— r/sciencememes.
Neil Postman e Amusing ourselves to death já apareceram aqui pelas bandas do Boa Noite Internet. Foi no debate holográfico entre Aldous Huxley e George Orwell, onde abri com um trecho do prefácio do nosso livro da vez, com a visão de Postman de que “estávamos com medo de 1984, mas acabamos em Admirável mundo novo”.
O que Orwell temia eram aqueles que baniriam livros. O que Huxley temia era que não haveria motivo para banir um livro, pois não haveria ninguém que quisesse ler um. Orwell temia aqueles que nos privariam de informação. Huxley temia aqueles que nos dariam tanta informação que seríamos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que a verdade nos fosse ocultada. Huxley temia que a verdade se afogasse num mar de irrelevância. Orwell temia que nos tornássemos uma cultura cativa. Huxley temia que nos tornássemos uma cultura trivial, preocupada com algum equivalente dos filmes sensíveis, da orgia-porgia e do bumblepuppy centrífugo. Como Huxley observou em Regresso ao Admirável Mundo Novo, os libertários civis e racionalistas, sempre alertas para combater a tirania, “não levaram em conta o apetite quase infinito do homem por distrações”. Em 1984, Huxley acrescentou, as pessoas são controladas pela imposição da dor. Em Admirável Mundo Novo, são controladas pela imposição do prazer. Em suma, Orwell temia que aquilo que odiamos nos arruinasse. Huxley temia que aquilo que amamos nos arruinasse.
Este livro trata da possibilidade de que Huxley, não Orwell, estivesse certo.
Por isso estamos em pleno 2025 falando de um livro de 1985 — e porque estes “resumos comentados” vão buscar sempre conectar o pensamento de quarenta anos atrás com o que estamos vivendo hoje, um resumo comentado plus. Spoiler: Postman acertou demais.
Eu costumo brincar que o problema do jovem é achar que não existia mundo antes de ele chegar — tudo bem, eu já fui esse jovem. Temos essa mania de colocar a culpa de toda a ruína da sociedade na internet e suas redes sociais. Mas o que Postman mostra é que essa “ladeira abaixo” vem (pelo menos) desde a explosão da mídia de massa em geral e, especificamente, de sairmos de uma tradição escrita para uma televisiva. Se hoje reclamamos que todo mundo precisa viver um personagem nas redes sociais para “se vender”, ler Amusing ourselves mostra que só aprendemos com a TV e aplicamos online. Que a verdadeira promessa da Internet foi cumprida: a desintermediação, o fim dos “porteiros da mídia”. Agora, ninguém mais precisa de um diretor de programação decidindo quem vai ao ar ou não. Todo mundo vai ao ar.
Postman abre o capítulo 1 dizendo que a cidade que mais representa os EUA em 1985 não é Boston (o centro político da independência americana) nem mesmo Nova Iorque, mas sim Las Vegas, lugar onde there’s no business like show business.
Enquanto escrevo estas linhas, o presidente dos Estados Unidos é um ex-ator de Hollywood. Um dos seus principais adversários em 1984 já foi protagonista do programa de televisão mais glamoroso dos anos 1960 — um astronauta. Naturalmente, fizeram um filme sobre sua aventura extraterrestre. O ex-candidato George McGovern apresentou o popular programa “Saturday Night Live”. O mesmo aconteceu com um candidato mais recente, o reverendo Jesse Jackson.
De lá para cá, sabemos, um presidente ator de faroeste parece besteira perto de um que foi apresentador de reality show. É curioso Postman citar a participação de políticos no SNL, porque na época da primeira eleição de Trump, o programa (e seus “filhos”, como o talk show de Jimmy Fallon) foram acusados de “suavizar” a imagem de Trump para as massas. De monstro fascista a doidinho excêntrico inofensivo.
O impacto cultural da TV foi tão grande na política que Postman lembra de Richard Nixon dizendo que perdeu as eleições porque foi sabotado por seus maquiadores. Coincidência ou não, desde este caso (em 1960), só 6 eleições americanas foram vencidas pelo candidato mais baixo.
Embora a Constituição não mencione isso, parece que pessoas gordas agora estão efetivamente excluídas de concorrer a altos cargos políticos.
E se hoje reclamamos de que até médicos precisam ter muitos seguidores no Instagram para conseguir clientes, Postman mostra que a famosa sexóloga americana “Doctor Ruth” já entendeu este jogo décadas atrás.
A doutora Ruth Westheimer é uma psicóloga que tem um programa de rádio popular e um espetáculo no qual informa o público sobre sexo em toda sua infinita variedade, usando uma linguagem antes reservada aos quartos e esquinas. Ela diverte muito […] e já disse: “Não começo tentando ser engraçada. Mas se sai assim, uso isso. Se me chamam de artista, digo que é ótimo. Quando um professor ensina com senso de humor, as pessoas saem lembrando de alguma coisa”. Ela não disse do que se lembram nem de que serve essa lembrança. Mas tem razão: é ótimo ser um artista. De fato, na América, Deus favorece todos aqueles que possuem tanto talento quanto formato para divertir, sejam pregadores, atletas, empresários, políticos, professores ou jornalistas. Na América, as pessoas menos divertidas são os artistas profissionais.
Isso acontece porque o meio é a mensagem — tem um episódio do podcast inteiro sobre isso, onde vimos, por exemplo, como as músicas populares foram mudando de duração conforme o meio onde tocavam — espetáculos, rádio, festas de DJ, Spotify… Cada meio de comunicação “prefere” certos tipos de mensagem. Até aí tudo bem, mas desta maneira, o meio acaba moldando a sociedade. Um ótimo exemplo está na invenção do relógio. Como objeto, como função, o relógio não deveria mudar em nada a sociedade. Ele só marca o tempo. Como é que “dois bracinhos” mudariam o mundo?
No grande livro de Lewis Mumford Technics and Civilization, (Técnica e civilização), ele mostra como, a partir do século 14, o relógio nos transformou em guardiões do tempo [time-keepers], depois em poupadores de tempo [time-savers] e agora em servos do tempo. No processo, aprendemos a desrespeitar o sol e as estações, pois num mundo feito de segundos e minutos, a autoridade da natureza é substituída. De fato, como Mumford aponta, com a invenção do relógio, a Eternidade deixou de servir como medida e foco dos eventos humanos. Assim, embora poucos tenham imaginado a conexão, o tique-taque inexorável do relógio pode ter contribuído mais para o enfraquecimento da supremacia de Deus que todos os tratados produzidos pelos filósofos do Iluminismo. O relógio introduziu uma nova forma de conversa entre o homem e Deus, na qual Deus parece ter saído perdendo.
Ou a invenção dos óculos de grau, no século 12, que fez mais do que nos ajudar a ver melhor, “mas sugeriu a ideia de que os seres humanos não precisam aceitar como definitivos nem os dons da natureza, nem os estragos do tempo”.
Uma ideia não existe sozinha, ela é limitada e moldada pelo meio onde está sendo contada. Em cada meio conversamos de maneira diferente e “a maneira como somos obrigados a conduzir essas conversas terá a maior influência possível sobre quais ideias podemos expressar convenientemente”. Uma ideia em um livro é diferente dela em um e-mail, podcast, áudio de Zap, vídeo de YouTube, vídeo de TikTok, programa de TV… mesmo que seja, fundamentalmente, a mesma ideia. Cada meio traz (ou retira) coisas. É por isso que Postman aponta que 100 anos atrás, uma das figuras mais importantes da política era quem escrevia os discursos. Hoje, um papel bem mais importante está no gerenciamento de imagem.
Até mesmo coisas totalmente banais hoje em dia, como “as notícias do Brasil e do mundo”, toda noite na TV, só foram possíveis com os avanços tecnológicos da TV e satélites. Não que um terremoto do outro lado do mundo não seja importante. É só que antes a explosão de um vulcão do outro lado do planeta demorava tanto quanto a fumaça para chegar até alguém nas Américas. Hoje, é impensável pensar em uma sociedade saudável sem as notícias diárias, imediatas.
Para explicar da forma mais clara possível, este livro é uma investigação e um lamento sobre o fato cultural americano mais significativo da segunda metade do século 20: o declínio da Era da Tipografia e a ascensão da Era da Televisão.
Se o relógio mudou fundamentalmente todas as sociedades, o que dizer então do alfabeto e, mais tarde, da prensa de tipos móveis? Agora podemos ver os pensamentos de alguém. Eu e você estamos olhando as exatas mesmas palavras de Neil Postman — mesmo que nossa interpretação seja diferente. Não dependemos de nossas memórias. Podemos analisar suas ideias e — uma parte importante do poder da escrita: analisar, criticar e, assim, criar novos textos. “A escrita congela a fala” — e aí está seu maior valor. A escrita é “uma conversa com ninguém e ainda assim com todos.”
O que poderia ser mais estranho que o silêncio que encontramos ao fazer uma pergunta a um texto? O que poderia ser mais desconcertante metafisicamente que se dirigir a um público invisível, como todo escritor de livros deve fazer? E se corrigir porque sabemos que um leitor desconhecido desaprovará ou compreenderá mal? Trago tudo isso à tona porque meu livro trata de como nossa própria tribo está passando por uma mudança vasta e tremula da magia da escrita para a magia da eletrônica.
O meio onde o pensamento é expresso muda o pensamento, porque age na maneira com que pensamos. Um exemplo que sempre dou é do meu “auge no Twitter” onde eu me acostumei a “pensar em 140 caracteres”. Foi ótimo como exercício de concisão, me tornou um escritor melhor. Ao mesmo tempo, nos condicionou a só aceitar argumentos colocados em textos curtos. É daí que vem a “cultura da lacração”, um argumento condensado que é tão contundente, tão arrasador que nada mais poderá ser dito. Pode lacrar a conversa, ela está encerrada.
É por tudo isso que o nome do capítulo é “o meio é a metáfora”. Cada meio é uma escolha de metáforas para se trazer uma ideia. Quando penso ou sinto uma coisa e tento colocar esta mesma ideia e sentimento dentro de você, o nome disso é linguagem. Quando digo que uma história “apertou meu coração” não há nenhuma mão ou corda comprimindo um órgão do meu corpo — ninguém vai achar que isso aconteceu. Ainda assim, você entende o que estou querendo dizer. Cada meio funciona melhor com certos tipos de metáfora.
Perceber que o meio é a escolha de metáforas é ainda mais importante em tempos de IA, onde “fabricar mensagens” é cada vez mais rápido e mais barato. A grande pergunta feita hoje é “o que é verdade?”. Ontem um amigo mandou uma história no Zap e minha reação automática foi “tá, mas isso é verdade?”. Talvez porque eu seja um dinossauro, preocupado com esse tipo de bobagem… verdade! Até porque, o que é verdade, afinal de contas?
Lembra do famoso exercício filosófico: se uma árvore cai na floresta, mas ninguém estava lá, ela emitiu som? Penso em uma nova versão da pergunta: se você me mandar um vídeo de uma árvore real caindo em uma floresta real, fazendo som, ela caiu realmente? Porque aquilo que estou vendo não é uma árvore, são luzes acesas em um pedaço de metal e plástico. Isto não é um cachimbo. É a representação de uma árvore caindo na floresta.
Tudo é metáfora.
Quando Galileu observou que a linguagem da natureza está escrita em matemática, ele usou apenas uma metáfora. A própria natureza não fala. Nem nossas mentes ou nossos corpos ou, mais relevante para este livro, nossos corpos políticos. Nossas conversas sobre a natureza e sobre nós mesmos são conduzidas em quaisquer “linguagens” que consideramos possível e conveniente empregar. Não vemos a natureza ou a inteligência ou a motivação humana ou a ideologia como “são”, mas apenas como nossas linguagens são. E nossas linguagens são nossa mídia. Nossa mídia são nossas metáforas. Nossas metáforas criam o conteúdo de nossa cultura.
Agora é com você
Lance suas metáforas no nosso meio escolhido para conversa: a caixa de comentários.
A seguir, a segunda parte do “argumento-base” do livro: Meio como epistemologia.
Nos vemos lá,
crisdias