Debates holográficos: George Orwell e Aldous Huxley
Vivemos na distopia de “1984”, na de “Admirável Mundo Novo”… ou nas duas?
Não julgue muito e ame mais.
— Julia Huxley, em carta para seu filho Aldous
Em 2016, logo depois da eleição de Donald Trump para presidente dos EUA, dispararam as vendas do livro “Mil novecentos e oitenta e quatro”, lançado por George Orwell em 1949. A eleição fez a expressão “fake news” ganhar o mundo, não só porque Trump e sua turma faziam afirmações falsas o tempo todo, mas também acusavam qualquer notícia que lhes fosse desfavorável como falsa. “The fake news media” era sua forma preferida de se referir aos jornalistas.
Não demorou para todo mundo perceber a semelhança com o duplipensar de Orwell, nome artístico do inglês Eric Arthur Blair — e eu tinha hoje anos de idade quando descobri isso. No romance, duplipensar é a capacidade de aceitar simultaneamente duas crenças contraditórias como verdadeiras. O Partido controla a sociedade pelo “Ministério da Verdade” que divulga lemas como “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”, defendendo que as notícias verdadeiras são falsas e as falsas são verdadeiras — “sempre estivemos em guerra com a Eurásia” em um ponto da história vira “sempre estivemos em guerra com a Lestásia”.
1984 é um baita livro e leitura obrigatória para quem se interessa por “futuros possíveis”, mesmo que o futuro seja 41 anos atrás — isto se eles viviam realmente em 1984, como chega a ser questionado no terceiro capítulo.
Até aí tudo bem! Só que “no ano seguinte”, em 1985 da nossa linha do tempo, o teórico de mídia americano Neil Postman publicou o livro Amusing Ourselves to Death — sem versão brasileira — sobre o impacto da televisão ao se transformar no principal meio de contar histórias e notícias. Postman mete a seguinte pedrada no prefácio:
Mantínhamos nossos olhos fixos em 1984. Quando o ano chegou e a profecia não se concretizou, os americanos sensatos entoaram suaves louvores a si mesmos. As raízes da democracia liberal haviam resistido. Onde quer que o terror tivesse acontecido, nós, ao menos, não havíamos sido visitados pelos pesadelos orwellianos.
Mas havíamos esquecido que, ao lado da visão sombria de Orwell, existia outra — um pouco mais antiga, um pouco menos conhecida, igualmente perturbadora: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Ao contrário do que se acredita, mesmo entre os instruídos, Huxley e Orwell não profetizaram a mesma coisa. Orwell alerta que seremos subjugados por uma opressão imposta externamente. Mas na visão de Huxley, não é preciso um Grande Irmão para privar as pessoas de sua autonomia, maturidade e história. Segundo ele, as pessoas aprenderão a amar sua própria opressão, a adorar as tecnologias que destroem sua capacidade de pensar.
O que Orwell temia eram aqueles que baniriam livros. O que Huxley temia era que não haveria motivo para banir um livro, pois não haveria ninguém que quisesse ler um. Orwell temia aqueles que nos privariam de informação. Huxley temia aqueles que nos dariam tanta informação que seríamos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que a verdade nos fosse ocultada. Huxley temia que a verdade se afogasse num mar de irrelevância. Orwell temia que nos tornássemos uma cultura cativa. Huxley temia que nos tornássemos uma cultura trivial, preocupada com algum equivalente dos filmes sensíveis, da orgia-porgia e do bumblepuppy centrífugo. Como Huxley observou em Regresso ao Admirável Mundo Novo, os libertários civis e racionalistas, sempre alertas para combater a tirania, “não levaram em conta o apetite quase infinito do homem por distrações”. Em 1984, Huxley acrescentou, as pessoas são controladas pela imposição da dor. Em Admirável Mundo Novo, são controladas pela imposição do prazer. Em suma, Orwell temia que aquilo que odiamos nos arruinasse. Huxley temia que aquilo que amamos nos arruinasse.
Este livro trata da possibilidade de que Huxley, não Orwell, estivesse certo.
Se você só tiver que ler um livro sobre letramento midiático, leia o de Postman — que faleceu em 2003, aos 72 anos, sem ver isso tudo que está aí.
Em Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, Aldous Huxley — que chegou a dar aulas de francês para o jovem Orwell/Blair — imagina uma sociedade do ano 2540 onde a humanidade vive em aparente harmonia, sem guerras ou conflitos. As pessoas são criadas em laboratório e condicionadas desde o nascimento para aceitar seus papéis sociais predeterminados. O controle se dá através do prazer: sexo livre, entretenimento constante, feelies (filmes que estimulam todos os sentidos, não apenas visão e audição) e uma droga chamada soma, que elimina qualquer tristeza ou questionamento. Não existe família, arte ou religião — elementos considerados fonte de instabilidade. A história segue Bernard Marx, um dos poucos que questiona esse sistema, quando ele descobre uma reserva onde ainda vivem humanos “selvagens” que mantêm nosso modo de vida atual. Entre os selvagens está John, que vira uma “celebridade” por seu estilo de vida.
Em outubro do ano passado, publiquei aqui no Boa Noite Internet um projeto artístico que chamei de “debate holográfico”, usando IA para fazer o encontro entre duas personalidades já falecidas para “conversarem” sobre suas visões de mundo. Naquela edição, trouxe o antropólogo americano David Graeber (1961–2020) para confrontar seu conceito de “bullshit jobs” com o escritor francês Albert Camus (1913–1960), sob sua lente do mito de Sísifo — condenado a empurrar eternamente um pedregulho morro acima — e de que Sísifo era feliz.
O texto foi um dos mais lidos e “comentados nas redes” do ano, o que me levou a imaginar outros encontros do tipo. No topo da lista estava “Orwell e Huxley”, diretamente inspirado pelas palavras de Neil Postman e no ponto da história em que estamos. Com a volta de Trump à presidência americana, chegou a hora de mais uma edição dos debates holográficos.
Mais do que tentar descobrir quem errou ou acertou, “chamei” dos dois autores aqui para olhar para nosso mundo de quarto-de-século pelo prisma de suas obras seminais. Desta vez usei a funcionalidade do ChatGPT de criar “GPTs personalizados” treinados a partir do material original dos dois. Depois, passei os textos pelo Claude, que acho melhor escritor do que o gepetão. As respostas também foram editadas por mim, para clareza e compreensão. Se você quiser conversar com nossos hologramas, deixei o acesso público: Orwell Holográfico e Huxley Holográfico.
Vem pro Clube de Cultura Boa Noite Internet
Antes do debate, é sempre bom lembrar que segue a todo vapor o nosso Clube de Cultura, desta vez com resumos comentados do livro A crise da narração, de Byung-Chul Han. A “crise” do livro é aquela onde a sociedade troca a narração por mera informação. Sexta-feira chega no e-mail de todo mundo que apoia o Boa Noite Internet o resumo comentado dos capítulos “A vida narrada”, “A vida desnuda” e “Desencantamento do mundo”.
O resumo dos três primeiros já estão no site, com o prefácio liberado para todo mundo.
Orwell e Huxley, um debate holográfico
A indignação se transforma em mais um produto de consumo, e a seriedade dos crimes se dilui no espetáculo político.
Cris: Orwell, você previu o controle através do medo e da opressão. Onde você acredita que acertou ou errou em sua visão de 1984, olhando para 2025?
Orwell: Olhando para 2025, vejo que acertei em aspectos preocupantes, mas errei em outros. Acertei na manipulação da verdade e no uso do medo para impor conformidade. Os conceitos de “duplipensar” e “novilíngua” de 1984 têm ecos claros hoje — vemos isso na forma como fake news e desinformação moldam percepções e dividem a sociedade.
Mas errei ao não prever o poder do entretenimento e da distração. Em 1984, o controle vem do medo constante. Em 2025, ele vem mais do excesso de estímulos e da saturação de informações — algo que Huxley previu melhor que eu. A vigilância ainda existe, mas as pessoas a aceitam de bom grado em troca de comodidades tecnológicas.
Cris: Huxley, por que você, ao contrário de Orwell, imaginou um futuro dominado pelos estímulos em uma época em que a mídia de massa ainda estava longe de ser ralidade?
Huxley: Minha visão veio da observação de tendências que já se manifestavam no início do século XX. O fordismo não estava apenas transformando a produção — estava mudando como as pessoas pensavam e viviam. Vi ali o embrião do que seria o Estado Mundial de Admirável Mundo Novo, com seu mantra de “comunidade, identidade, estabilidade”.
A publicidade e a propaganda já mostravam seu poder durante a Primeira Guerra Mundial, provando como as emoções das massas podiam ser manipuladas. Os estudos de Pavlov e Watson sobre condicionamento humano só reforçaram minhas preocupações — é exatamente isso o que é feito com os cidadãos no meu romance.
O que me assustava não era tanto a tecnologia em si, mas como ela poderia ser usada sem freios éticos para seduzir e controlar. Diferente da repressão brutal imaginada por Orwell, eu temia algo mais sutil: um mundo onde as pessoas amariam sua própria servidão. Afinal, por que alguém buscaria liberdade quando está distraído e satisfeito?
Não foi uma premonição exata da mídia de massa, mas uma reflexão sobre padrões que já se desenhavam. O risco que vi não estava no presente, mas no que aconteceria quando esses mecanismos de controle fossem aperfeiçoados e amplificados pela tecnologia.
Cris: Orwell, o controle por opressão em 1984 requer a destruição da verdade objetiva. Na sala 101 as pessoas passam por estágios de “cura”: aprendizado, compreensão e, finalmente, aceitação. Em que estágio estamos em 2025?
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