Kurt Vonnegut: fazer arte em segredo é um ato de resistência contra a tirania do desempenho
Em tempos de likes e métricas, redescobrir o valor do processo criativo sem plateia é um ato revolucionário.
Em 2006, uma professora americana pediu aos alunos que escrevessem para autores famosos pedindo conselhos. De todos os contatados, só Kurt Vonnegut (1922–2007) escreveu de volta. Sua resposta sobre o valor do processo criativo — não do resultado — segue pra lá de válida até hoje.
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5 de novembro de 2006
Queridos alunos da Xavier High School, e querida Sra. Lockwood, e senhores Perin, McFeely, Batten, Maurer e Congiusta:
Obrigado pelas cartas tão gentis. Vocês realmente sabem como animar um velhote (84 anos!) nos seus anos de ocaso. Já não faço mais aparições públicas — hoje em dia pareço mais com uma iguana do que com um ser humano.
Mas o que eu tinha a dizer a vocês, na verdade, é bem simples e direto: pratiquem qualquer forma de arte — música, canto, dança, atuação, desenho, pintura, escultura, poesia, ficção, ensaio, reportagem — não importa se fazem bem ou mal, e não pelo dinheiro ou pela fama, mas para viver o processo de se tornar quem vocês são, para descobrir o que existe aí dentro, para fazer a alma crescer.
É sério! O que quero dizer é: agora, já, comecem a fazer arte e continuem assim pelo resto da vida. Façam um desenho engraçado ou bonito da Sra. Lockwood e deem a ela. Dancem voltando da escola, cantem no chuveiro, desenhem uma cara no purê de batata. Finjam que são o Conde Drácula.
Aqui vai uma tarefa para hoje à noite — e espero que a Sra. Lockwood reprove quem não fizer: escrevam um poema de seis versos, sobre qualquer coisa, mas com rima. Nada de jogar tênis sem rede. Façam o melhor que puderem. Mas não contem a ninguém o que estão fazendo. Não mostrem nem recitem para ninguém — nem para namorados, pais ou para a própria Sra. Lockwood. Combinado?
Rasguem o poema em pedacinhos minúsculos e joguem os pedaços em lixeiras bem distantes umas das outras. Vocês vão perceber que já foram gloriosamente recompensados pelo poema. Experimentaram o processo de se tornar, aprenderam um bocado sobre o que existe aí dentro, e fizeram a alma crescer.
Deus abençoe vocês!
(assinado)
Kurt Vonnegut
Se você tiver como, veja o documentário Kurt Vonnegut: Unstuck in Time, dirigido por Robert B. Weide.
Que legal isso que você fez! Devia botar para vender…
Terça-feira fiz um post no Linkedisney sobre “Fazer arte é inútil porque a IA vai ser melhor que eu” e nos comentários rolou uma interação que continua morando aqui na minha cabeça.