A vida é ilusão, a desilusão é destruição.
— Karl Jaspers
Esta semana aconteceu uma coisa muito estranha no Brasil. E não estou falando da operação da Polícia Federal que prendeu pessoas ligadas a uma conspiração para matar membros do governo. Meu espanto foi com a nossa reação a este fato absurdo. Deixa eu repetir: um plano para matar mais de um governante de alto escalão, incluindo presidente e vice. Por muito menos guerras já foram iniciadas. A nossa reação? “Puxa vida, que loucura. Agora deixa eu voltar pro meu jóbe aqui.”
Comigo também foi assim, quem sou eu para conseguir fugir do estado emocional do mundo? “Marrapais. É claro que tinha um plano. Zero espanto.” E seguimos — arrasta pra cima. Há mais de uma década vemos absurdos sendo ditos e cometidos1 e nossa reação é levantar os olhos, dar atenção por meio minuto e voltar ao que estava sendo feito. E o pior: isto é um mecanismo de autopreservação, porque no ciclo de notícias “o tempo todo” — que começou com a TV por assinatura e agora vive nos nossos bolsos — agir diferente disso é enlouquecer. Como enlouquecemos em 2020, sem mais nada a fazer a não ser nos desesperarmos com cada notícia.
Quando este tipo de coisa acontece me lembro de uma palavra que tenho ouvido muito de poucos anos para cá. Desencanto. O fim da magia, o sonho acabou. Crescemos ouvindo que o mundo é um lugar maravilhoso, que o ser humano é forte, inteligente e que quando tudo dá errado nos unimos e superamos os desafios.
Talvez o início do fim tenha sido em 2008, quando a resposta dos governos para uma das maiores crises financeiras da história foi “o cidadão que se lasque, vamos dar dinheiro para as empresas” — sob a justificativa de “salvar empregos”, é claro. Mas o povo não é bobo. Cadê a história de livre mercado, de que a falência de um é a oportunidade de outro? Onde foi parar a meritocracia quando o dinheiro público é usado para salvar o mercado financeiro de um problema que ele mesmo criou? Receba desencanto.
Vieram então os movimentos anti-sistema, qualquer sistema. Occupy, Primavera Árabe, até mesmo o “fora Dilma” de 2013. As coisas “melhoraram, só que para pior”, como falou um amigo outro dia. Então veio Trump em 2016 e Bolsonaro em 2018. Não importa em que lado da “guerra cultural” você esteja, os dois partilhavam o sentimento de desencanto. A direita virou o movimento “contra tudo isso que está aí”. Com razão? Afinal de contas, em 2008 os principais governos do mundo, de Obama a Lula, podiam ser chamados “de esquerda” (dentro do contexto de cada país naquele momento, perdão Marx). Onde estava a causa trabalhadora?
Aí, para coroar tudo, para mostrar que não tô maluco sozinho, veio 2020. A catástrofe global tão imaginada por Hollywood chegou… e ninguém se ajudou. O máximo que deu para fazer foi uma manchete aqui e ali enaltecendo profissionais de saúde, especialmente de enfermagem — mas que passada a crise voltaram a trabalhar em condições sucateadas. O planeta em crise, pessoas morrendo, outras apavoradas em casa, sem saber seu futuro, mas faltou papel higiênico, teve gente lutando pelo direito de enfiar ozônio em orifícios. Sem falar nas bolsas de valores, que subiram como nunca. O mundo acabou e foi good for business.
O encanto foi desfeito, vimos o mundo real. Veio, então, ela. A desesperança.
Se o slogan oficial do Boa Noite Internet é “entendendo o mundo através de histórias interessantes”2, lá fui eu tentar pensar como viemos parar aqui — e qual o antídoto. Essa foi uma pergunta que fiz muito nas entrevistas do podcast este ano. “E qual o antídoto? Como a gente não cai nessa?” E, ainda pensando nos fatos políticos da semana, lembrei da famosa expressão da filósofa alemã Hannah Arendt: a banalidade do mal, subtítulo de seu livro “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, seu relato e análise do processo contra Adolf Eichmann, o maior julgamento de um nazista fora dos tribunais de Nurembergue.
Arendt descobriu que Eichmann não era um monstro ideológico nem um psicopata sádico. Era só medíocre mesmo. Um funcionário público que seguia ordens e preenchia planilhas. Que se orgulhava de sua eficiência em “resolver problemas logísticos”. Que falava em corporativês mesmo quando discutia o extermínio de milhões. O mal não é o vilão do cinema, não é um imperador louco que bota fogo na própria cidade ou um conquistador que comanda um exército brutal. É um burocrata. Eichmann não era um caso raro, é o comum.
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