Como isso pôde acontecer? Fui tão cuidadoso. Escolhi a peça errada, o diretor errado, o elenco errado. Onde foi que eu acertei?
— Max Bialystock
Você talvez não o conheça pelo nome — tudo bem, até hoje de manhã eu também não o conhecia —, mas Alan Smithee dirigiu mais de 80 produções em cinco décadas. Seu currículo inclui o épico de ficção científica Duna (o de 1984), clássicos como Fogo contra Fogo (1995), com Al Pacino e Robert DeNiro, e o drama Encontro Marcado (1998), onde Brad Pitt é a morte. Sua carreira não se limitou às telonas, é também dele a direção do clipe “I Will Always Love You” de Whitney Houston. Na TV, seu nome aparece nos créditos de séries populares como The Cosby Show, Profissão: Perigo e La Femme Nikita. Smithee chegou a tentar a carreira nos quadrinhos, escrevendo as edições 338–342 do Demolidor para a Marvel.
Um conjunto da obra como este seria digno de retrospectivas em museus e homenagens em festivais. Smithee atravessou os momentos mais turbulentos de Hollywood mantendo uma estranha consistência — cada um de seus filmes parecia tão fundamentalmente diferente dos outros que críticos nunca conseguiram identificar sua assinatura estilística. Na verdade, ninguém nunca viu Alan Smithee receber um prêmio, dar uma entrevista ou aparecer em fotos de bastidores. Humildão?
Alan Smithee é tão versátil que é como se ele fosse vários diretores juntos.
Que é exatamente o que ele é, um pseudônimo, um personagem. Mas não no sentido de um “coletivo criativo”. É mais legal do que isso — com uma reviravolta digna de Hollywood no final.
O nome foi criado pela Directors Guild of America (DGA) em 1968. Em Hollywood, quando diretores perdiam o controle criativo de seus filmes por interferência de estúdios ou produtores e não queriam mais ser associados à obra final, podiam solicitar que seu nome fosse substituído nos créditos por “Alan Smithee”.
O processo não era simples nem automático. Para isso, precisavam provar à guilda que o filme havia sido alterado contra sua vontade, a ponto de comprometer sua visão artística original e potencialmente prejudicar sua reputação profissional. A DGA exigia evidências concretas de interferência prejudicial antes de permitir o uso do pseudônimo, e o diretor que conseguia aprovação era proibido de comentar publicamente sobre o caso — uma regra criada para evitar que o artifício virasse ferramenta de marketing ou vingança pessoal.
O caso mais conhecido é o de David Lynch e Duna. No cinema, é seu nome que aparece, mas quando a versão estendida para televisão foi ao ar com cenas adicionais que ele não aprovou, Lynch pediu o uso do pseudônimo. E não apenas na direção — ele também rejeitou o crédito pelo roteiro da versão televisiva, usando o nome “Judas Booth”, uma combinação macabra que referencia tanto o traidor de Jesus quanto John Wilkes Booth, assassino de Abraham Lincoln.
Outros casos notáveis incluem Martin Brest em Encontro Marcado — mas apenas para a versão editada para exibição em voos comerciais e TV a cabo. O mesmo aconteceu com Michael Mann e seu filme O Informante (1999). Dennis Hopper também removeu seu nome de Catchfire (1990), estrelado por ele mesmo e Jodie Foster, mas anos depois lançou sua versão diretor com o título Backtrack. Walter Hill, diretor de Guerreiros do Fogo e 48 Horas, não queria ser associado a Hellraiser: Bloodline (1996), que sofreu tantas interferências do estúdio que mal lembrava sua visão original. Até Michael Cimino, diretor do oscarizado O Franco Atirador, já usou o pseudônimo.
Diretoras também recorreram a Alan Smithee. Mary Lambert removeu seu nome de um episódio de Red Shoe Diaries, e Floria Sigismondi fez o mesmo com o videoclipe “Sweet Surrender” de Sarah McLachlan. Leslie Hope, ao dirigir o episódio piloto da série Frankie Drake Mysteries, adotou a variação “Alanis Smithee”.
Alguns filmes acreditados a Alan Smithee têm produções tão conturbadas que ninguém sabe ao certo quem os dirigiu. Raging Angels (1995), Smoke n Lightnin (1995) e Another Night of the Living Dead (2011) são exemplos do caso “perfeito” para o pseudônimo — filmes onde os diretores quiseram se desligar tão completamente que seu envolvimento foi apagado sem deixar rastros. “Esqueçam que fiz isso”.
Até aí tudo bem! A história de Alan Smithee já seria incrível por si só. O poder que só grupos unidos conseguem ter, protegendo diretores do sistema que deveria apoiá-los. Uma forma de resistência dentro das engrenagens de Hollywood, permitindo que artistas frustrados pelo controle dos estúdios pudessem preservar sua integridade sem ter que partir para brigas públicas que poderiam atrapalhar suas carreiras.
Mas, em 1997, a história de Alan Smithee teria uma guinada absurda. Chegou aos cinemas o filme Burn Hollywood Burn: An Alan Smithee Film (lançado no Brasil como Hollywood — Muito Além das Câmeras e no Rio Grande de Fora como Um Realizador de Respeito), uma metacomédia sobre ele, Alan Smithee.
O projeto tinha credenciais respeitáveis. Foi escrito por Joe Eszterhas, o roteirista de sucessos como Instinto Selvagem e… Showgirls. A direção ficou com Arthur Hiller, indicado ao Oscar por Love Story — Uma História de Amor. O elenco incluía Ryan O’Neal (o galã de Love Story), Eric Idle (do Monty Python), Whoopi Goldberg, Jackie Chan e Sylvester Stallone, entre outros. Com orçamento estimado em 10 milhões de dólares e distribuição pela Buena Vista (Disney), o filme parecia ter tudo para ser pelo menos uma curiosidade lucrativa, uma piada contra o sistema, quase na mesma linha de Os Produtores de Mel Brooks ou a nova (e ótima) série O Estúdio.
No filme, Alan Smithee (Eric Idle) é um montador inglês contratado para fazer um blockbuster de ação estrelado por Stallone, Goldberg e Chan. Ele foi escolhido justamente porque os produtores acreditam que, com sua inexperiência, vão poder fazer o que quiserem com a história — que é exatamente o que acontece. Quando ele vai reclamar com os chefes, eles respondem que tudo bem. É só ele usar o pseudônimo oficial da DGA: Alan Smithee. Que já é o seu nome! *Gargalhadas maléficas forçadas, hua hua hua!!!*.
Desesperado, Smithee rouba a única cópia do filme e foge, ameaçando destruí-la. A saga inclui sua aparição no programa do Larry King (interpretando a si), um encontro com uma dupla de diretores independentes chamados — segura essa, não é um quadro do Casseta e Planeta — Irmãos Brothers (interpretados por Coolio e Chuck D), e termina com Smithee literalmente queimando o negativo do filme nas La Brea Tar Pits de Los Angeles.1
Sucesso garantido, certo? Claro que não. Durante a produção, o diretor Arthur Hiller perdeu o controle criativo para Eszterhas, que reescreveu e remontou o filme sem sua aprovação. Hiller ficou tão insatisfeito com o resultado que solicitou à DGA para… remover seu nome dos créditos. Assim, Burn Hollywood Burn: An Alan Smithee Film foi oficialmente dirigido por ninguém menos do que Alan Smithee.
Lançado em apenas 19 cinemas nos EUA, o filme acabou arrecadando meros 59.921 dólares — complicado para pagar o orçamento de 10 milhões. A crítica não poupou palavras. O famoso crítico Roger Ebert deu zero estrelas ao filme e escreveu: “é um filme espetacularmente ruim — incompetente, sem graça, mal concebido, mal executado, com um roteiro fraco e atuações de pessoas que parecem completamente desorientadas.” No agregador Rotten Tomatoes, o filme mantém até hoje apenas 8% de aprovação da crítica e 15% do público.
Na cerimônia do Framboesa de Ouro de 1999 (o “Oscar dos piores filmes do ano”), Burn Hollywood Burn levou cinco estatuetas, incluindo Pior Filme, Pior Diretor para “Alan Smithee” e três prêmios para Eszterhas: Pior Roteiro, Pior Ator Coadjuvante e Pior Nova Estrela (ele faz uma ponta no filme). Com isso, se tornou o maior vencedor da história da premiação até então — um recorde que seria superado no ano seguinte por As Loucas Aventuras de James West e hoje pertence a Cada Um Tem a Gêmea que Merece, onde Adam Sandler venceu como pior ator e pior atriz.2
Só que a maior vítima do filme foi o próprio Alan Smithee. Agora que o público “sabia da piada”, ela deixava de ser uma ferramenta discreta e a DGA aposentou oficialmente o pseudônimo em 2000 — algumas obras seguem usando o nome de maneira extra-oficial, uma homenagem. Para o filme Supernova, lançado naquele mesmo ano, o diretor Walter Hill precisou colocar nos créditos o nome “Thomas Lee”.
Qual a moral da história? Nenhuma. É só um daqueles casos envolvendo humanos reais e, se virassem filme, ninguém ia acreditar. Ah, pronto! Começou a mentirada. Alan Smithee teve seu filme queimado nas La Brea Tar Pits — sim, eu fiz esse trocadalho —, e nós aqui nos divertimos com mais uma história maluca de Hollywood.
Por hoje é só
Cuidem de si, cuidem dos seus. Até a próxima.
crisdias
Não tem nada a ver com a história de hoje, mas “brea” quer dizer “piche” em espanhol, que em inglês é “tar”. Sendo assim, “La Brea Tar Pits” é simplesmente “Os Poços de Piche O Piche”. Assim como o time de beisebol da cidade, The Los Angeles Angels, é “Os Os Anjos Anjos”. De nada.
O filme venceu todas as categorias do prêmio.