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📙 A mercadoria como espetáculo — quando um xamã senta para conversar com um filósofo

Resumo comentado de "A sociedade do espetáculo", capítulo 2.

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crisdias
nov 29, 2025
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O tempo é a única mercadoria que importa, e nós a vendemos barato.
— Philip K. Dick

No primeiro volume de O capital, Marx lança a ideia de “fetichismo da mercadoria”, que diz que, no capitalismo, as relações entre pessoas aparecem como relações entre coisas. Você não vê o trabalhador que costurou sua camisa, não conhece quem plantou seu café. Vê apenas os objetos na prateleira, com seus preços. As mercadorias ganham vida própria enquanto as pessoas que as produziram desaparecem.

Para Debord, no espetáculo, esse fetiche se completa. Não vemos mais nem as mercadorias reais, vemos suas imagens. A propaganda do carro é mais importante que o carro. A foto do prato no Instagram vale mais que a refeição. Vivemos num mundo onde a representação das coisas substituiu as próprias coisas.

É o princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas suprassensíveis embora sensíveis” que se realiza absolutamente no espetáculo, onde o mundo sensível se encontra substituído por uma seleção de imagens que existem acima dele, e que ao mesmo tempo se faz reconhecer como o sensível por excelência.

Debord dedica atenção especial ao que ele chama de “perda da qualidade”. A mercadoria reduz tudo ao quantitativo, ao mensurável, ao comparável. Um quadro vira um investimento — a fintech brasileira Hurst Capital vende obras de Di Cavalcanti como certificados regulados pela CVM, prometendo retorno de 20% ao ano. Nos Estados Unidos, a Masterworks administra $1,2 bilhão em 500 obras de Picasso e Banksy vendidas como ações. Onde ficam os quadros físicos? Ninguém sabe — viraram abstrações financeiras completas.

@nytimes
The New York Times on Instagram: "“No art investing experience?…

A forma-mercadoria transforma tudo em números porque só assim pode estabelecer equivalências — trocar uma coisa por outra através do dinheiro. No trabalho, vivemos a máxima “se não pode ser medido, não existe”, a busca incessante por ROI, a planilha sempre apontando para cima.

A perda da qualidade, tão evidente a todos os níveis da linguagem espetacular, dos objetos que ela louva e das condutas que ela regula, não faz senão traduzir os caracteres fundamentais da produção real que repudia a realidade: a forma-mercadoria é de uma ponta a outra a igualdade consigo própria, a categoria do quantitativo.

Lendo isso, lembrei de Davi Kopenawa, xamã yanomami que conheci quando o entrevistamos no podcast Casa Floresta, um projeto da Ampère com o Instituto Socioambiental. Ele tem um nome para os brancos: o povo da mercadoria. Não sei se já leu Marx, mas seu conhecimento — que vem de muito tempo antes do Karlzão da Massa — descreve exatamente o que Debord está falando. Em A queda do céu, Kopenawa diz que os brancos têm o pensamento obstruído, enredado em palavras obscuras. Querem acumular mercadorias sem parar, sem nunca se perguntar por quê. Para ele, a mercadoria tem um poder quase mágico — ela enfeitiça.

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