🚀 📈 Prisioneiros do gráfico sempre pra cima
Quando as pessoas são startups, a sociedade entra em burnout.
Quando nada é feito, nada fica por fazer.
— Lao Zi
Era mais uma daquelas reuniões-gerais para análise dos resultados do trimestre na Meta (que na época se chamava só Facebook), em algum ponto dos cinco anos que passei lá. O tom da chefia era de preocupação cautelosa. No telão do refeitório — usado para reuniões deste tamanho — um gráfico mostrava a receita da América Latina. Ele ia crescendo em cada quarter, mas depois de um certo ponto, começava a descer. Alerta!
Só que aquele gráfico não era exatamente da receita. Ele não tinha valores como “1 milhão, 2 milhões…”, mas sim percentuais, “10%, 20%, 15%, 8%…”. É porque ele não media a receita, mas sim o crescimento da receita comparando com o ano anterior. Então, veja, a receita não parava de crescer. O que estava “mal” era o ritmo de crescimento.
Por exemplo, com números totalmente inventados da minha cabeça:
2013: R$ 10 milhões
2014: R$ 13 milhões (crescimento de 30%, R$ 3 milhões)
2015: R$ 16 milhões (crescimento de 23,08%, R$ 3 milhões)
2016: R$ 19 milhões (crescimento de 18,75%, R$ 3 milhões)
2017: R$ 22 milhões (crescimento de 15,79%, R$ 3 milhões)
Essa empresa fictícia todo ano repete as vendas do ano anterior e ainda bota mais 3 milhões em cima. Em quatro anos, dobrou o faturamento. Ainda assim, a taxa de crescimento cai.
Dá pra usar a matemática para machucar ainda mais, imaginando uma empresa que fatura cada vez mais, só que, ainda assim, o gráfico do crescimento aponta para baixo:
2013: R$ 10 milhões
2014: R$ 13 milhões (crescimento de 30%, R$ 3 milhões)
2015: R$ 16,12 milhões (crescimento de 26,92%, R$ 3,5 milhões)
2016: R$ 19,34 milhões (crescimento de 24,81%, R$ 4 milhões)
2017: R$ 23,84 milhões (crescimento de 23,26%, R$ 4,5 milhões)
Ali, naquela reunião, eu vi que a matemática uma hora ia pegar a gente. Mas o problema não está só nas empresas, nós estamos fazendo o mesmo com nós mesmos.
Outro dia, o YouTube me mostrou um vídeo daqueles que apelam para nossa nostalgia: “lembra quando World of Warcraft era só um jogo”? Joguei muito WoW na vida. Mais do que me orgulho. De vez em quando bate umas saudades e volto, como foi o caso na virada do ano — por isso o algoritmo começou a me sugerir material sobre o jogo.
O vídeo me fez lembrar de quando o legal do WoW era “viver o mundinho”. Um lugar para estar e brincar, não um jogo para vencer. Eu passava horas explorando cada canto da Floresta de Elwynn, entrando em casas que “não serviam para nada”. Mas não foi essa parte do vídeo que me pegou. Foi quando ele mostrou um raid, uma “aventura em grupo” onde dezenas de jogadores precisam de todo um planejamento e coordenação para derrotar os inimigos mais difíceis do jogo. Essa parte aqui:
Especificamente a mensagem que aparece no meio da tela: “Stormsurge (1) — move away from target”, avisando que o monstro vai começar uma magia de área poderosa e todo mundo deve se afastar. O alerta foi gerado por um plugin para auxiliar os jogadores nas tarefas para derrotar o bichão e chegar com vida ao fim da aventura. Transformando, assim, a experiência da raid em um processo de apertar botões na hora certa. (Não que WoW, em geral, seja muito diferente disso, mas enfim.) O jogo não era assim, os jogadores é que criaram ferramentas assim — e algumas foram incorporadas ao jogo oficial, como marcadores no mapa dizendo exatamente quais inimigos devem ser derrotados. Alguns anos depois do lançamento — passada a era de descoberta do mundo — o jogo passou a ser considerado “chato” e as assinaturas começaram a ser canceladas.
Se o WoW antigo era para “viver no mundinho”, agora o lance é desbloquear conquistas, colecionar montarias, buscar a armadura perfeita — não porque ela é a mais bonita, mas porque tem os melhores números. E principalmente: tirou-se todo o atrito. Tudo é fácil, rápido, pontos piscando na tela. É claro que só estou pegando o WoW para Judas, qualquer jogo “de primeira linha”, daqueles que custam bilhões para produzir, é assim. Empresas e jogadores tentando maximizar a experiência.
Chamo esse fenômeno de “gráfico apontando para cima”. Nossa obsessão não só nas empresas, mas na vida pessoal, de que um número sempre pode — e vai, precisa — crescer.
Yuval Harari disse em Sapiens que o capitalismo é o sistema econômico que acredita que amanhã vai ser melhor do que hoje — se não fosse assim, não faria sentido investir, empreender. Mas todo dia vai sempre ser melhor do que o anterior? Claro que não.
Entramos tanto no mindset do “gráfico apontando para cima” (itálicos irônicos) que hoje queremos que o gráfico cresça pelo crescimento em si. Não porque é divertido, não porque nos deixa realizados nem pela glória da pátria. Achamos que a felicidade vem do nível do personagem subir, da receita da empresa crescer ou de bater a meta de passos diários no Apple Watch. Quando o crescimento vira um fim em si, o que acontece quando ele inevitavelmente desacelera?
A startup do self
Em algum momento começamos a tratar nossas vidas como startups em busca de crescimento exponencial. O objetivo deixa de ser “estar bem” e vira “estar melhor”. O gráfico sempre precisa estar apontando pra cima.
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