A escassez é nosso grande trauma ancestral
Precisamos aprender, como planeta, que vai ficar tudo bem.
Amanhã é amanhã.
— Shannon Goss
Semana passada, ao falar sobre confiança, disse que muitos dos nossos sofrimentos vêm da incapacidade de lidar com a saída da vida selvagem dos primatas para as grandes cidades. Não fomos feitos para viver assim.
< gesticula amplamente apontando para todos os prédios que cobrem 90% do céu e a maldita obra do metrô na frente de casa que parece que nunca vai acabar >
Na lista de coisas mais difíceis de se lidar na vida do século 21, a escassez vem forte aí no topo. Ou, no caso, a falta dela. É sobre isso que quero falar hoje.
Se existe uma força que molda a vida é a escassez. Da pequena bactéria a baleias-azuis, cada organismo luta contra a realidade de que não há o suficiente para se viver. Luz, água, comida. Tudo para gerar energia que vai nos permitir seguir vivendo. Viver para poder continuar buscando luz, água e comida. Viver para gerar outras vidas, perpetuando nosso material genético, gerando novas máquinas de buscar luz, água e comida.
E uma coisa que aprendemos lá quando ainda éramos amebinhas nadando nos grandes oceanos é que não tem pra todo mundo. Deve ter sido por isso que bilhões de anos depois alguns dos nossos familiares resolveram sair da água e se aventurar ao ar livre. "Cara, tô te falando! Lá tem comida sobrando, é só chegar e pegar!"
Assim foi a nossa história, uma luta para se manter vivo com o pouco que temos. Não sabemos o dia de amanhã, pode faltar. Ou, como dizia meu avô, "quem guarda, tem".
Deve ser por isso que inventamos a agricultura. Chega de depender do acaso, da vontade dos deuses ou da natureza. Em vez de ficar andando atrás de comida, teremos as plantas aqui ao nosso lado. Em vez de caçar, criaremos os animais em cativeiro e matá-los quando a fome bater.
É claro que não é simples assim. Ainda há tempestades, terremotos, incêndios, eras glaciais. Sem falar nas guerras com outras aldeias tentando pegar o fruto do nosso trabalho. Trabalho. A escassez inventou o trabalho. É preciso se esforçar agora para usufruir depois. Senão pode faltar. O poder vem da terra, porque dela vem o Mais, a força que nos permite lutar contra a falta de coisas, a escassez. Quanto mais terra, mais poder tenho, porque mais consigo plantar e extrair. Quem planta, tem.
Seguimos na história. Trilhamos a Rota da Seda. Construímos navios, cruzamos o Cabo das Tormentas e o Estreito de Magalhães, contornamos o globo sempre em busca do Mais. Dá para dizer que a escassez foi a força que levou o continente menos privilegiado geograficamente — a Europa — dominasse o resto do mundo na base da espada e da pólvora. Quantas guerras não foram travadas em nome de recursos naturais e rotas comerciais. Contamos a história dos vencedores e criamos um mundo com medo da escassez. Quem conquista, tem.
Passamos a fabricar coisas que não existiam. Máquinas para produzir o Mais de maneiras eficientes, em grande escala, rápido, sem desperdício. Inventamos carros, trens e aviões para nos fazer chegar logo aos nossos destinos, porque lá poderemos trabalhar. Trabalhamos para não faltar. Ficar sem trabalho passou a ser uma desgraça maior do que ficar sem Deus. Pessoas sem trabalho são vistas como fracas de caráter. Quem produz, tem.
Domamos o elétron e o átomo. A democracia venceu. Quer dizer, quem venceu foi o Livre Mercado. O direito supremo de possuir Mais e poder fazer transações com este Mais. Globalizamos o mundo. Exportamos nosso melhor café, comemos abacates mexicanos, fazemos o brasileiríssimo refogadinho com alho chinês e presenteamos quem amamos com rosas quenianas. Com navios e aviões, transformamos o planeta em um grande mercado. Se há uma seca aqui, podemos comer o que foi plantado acolá.
Vencemos.
Não, sério, vencemos. Acabou a escassez. Há estimativas de que até 40% da comida no mundo acaba não sendo consumida. Ninguém precisa passar fome. Em todas as outras categorias de necessidades básicas nós também estamos bem. Há remédios, energia elétrica… tudo para todos. Se organizar direitinho não falta nada.
Ainda assim… quase 1/4 da população do planeta não come o suficiente para ter uma vida saudável.
Porque não é fácil largar todo esse tempo de luta contra a escassez, da amebinha ao bisavô que foge da fome na Europa e vem tentar a vida no Novo Mundo. Além disso, vai saber se essa prosperidade do mundo vai durar? E se foram só anos de sorte — ou benção — ali no meio do século 20? Melhor se prevenir. Quem guarda, tem.
A escassez é nosso grande trauma ancestral.
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