Google Zero: os sites de busca não precisam mais de mim
Como "deixe o google googlar por você" mostra que criar conteúdo não tem valor no cenário atual da web.
O socialismo nunca se firmou nos Estados Unidos porque os pobres não se veem como um proletariado explorado, mas como milionários temporariamente envergonhados.
— John Steinbeck
Quem não está vendo X-Men 97 tá doido e perdendo uma das melhores coisas da TV neste momento. Nostalgia feita do jeito certo, onde o passado é respeitado (e esteticamente exaltado) mas a história não perde tempo com "antigamente é que era bom", repetindo bordões ou coisas do tipo.
Eu fico um pouco incomodado em como eles aceleram demais os arcos, introduzindo e resolvendo em 2 ou 3 episódios coisas que levaram anos nos quadrinhos. Talvez esta seja a realidade do mundo pós-TikTok. Qualquer coisa é só voltar lá e ler tudo (de novo?) na versão original.
Acabei de ver o episódio final da temporada e como diria o maior crítico cinematográfico deste século:
Eu, eu, eu
Esta semana tem podcast! Vou conversar com Lucas Liedke, psicanalista e metade do Vibes em Análise sobre “a cultura do POV”, onde nosso ponto-de-vista é a coisa mais importante do mundo.
Domingo, 20h, na rede mundial de podcasts. Ou aqui no seu e-mail.
Obrigado Google por nos salvar dos problemas que você mesmo criou
No comecinho de fevereiro meus grupos de Zap ferveram com o anúncio do Arc Browser, um "novo" navegador (baseado no motor do Chrome, é claro, porque é isso que todo mundo faz hoje em dia) com uma promessa ousada: organizar a web para nós.
O vídeo é bonitinho, engraçado, descolado, neo-hipster. A proposta de valor do Arc é simples: buscar qualquer coisa na web hoje virou um inferno; vamos resolver isso.
Os sites de conteúdo hoje em dia não são feitos para agradar pessoas como eu e você, mas sim o algoritmo do Google. Procure que dia cai a Páscoa e você vai ver parágrafos e mais parágrafos contanto a história do feriado. Uma receita de bolo vem com histórias inúteis de como aquela ali está há séculos na família — provavelmente tudo inventado. Um busca por guia de viagens vai trazer conteúdo que foi veladamente criado por uma rede de hotéis, "indicando" os "melhores" lugares para se hospedar. Sem contar que os primeiros resultados da busca são vídeos. Porque é bom pros números levar você pro YouTube.
É claro que se você bater lá no Google eles vão dizer que não é nada disso. Que basta criar conteúdo que as pessoas gostam e o algoritmo vai entender isso e privilegiar sites "feitos para as pessoas". Para mostrar que não é bem assim, o site de tecnologia The Verge resolveu partir pra grosseria e fez o pior artigo possível (para humanos) sobre recomendação de impressora. Em menos de 24 horas ele foi para o topo das buscas por best printers to buy.
O "experimento" teve dois artigos: um escrito pelo ChatGPT, outro pelo Google Gemini (que, neste momento, é o terceiro colocado quando busquei aqui).
Qual a solução para este mar de lama? Um algoritmo melhor? Um novo site de busca, livre das garras do mercado? Não, claro que não. Estamos em 2024.
Artificial Intelligence
As duas palavras de ouro.
O Arc Browser promete fazer o mesmo que o Google anunciou ontem no seu mega evento Google I/O. Nas palavras do próprio Google: deixe o Google googlar para você. Que é bem parecido com o slogan repetido durante o vídeo do Arc: um navegador que navega por você. Você joga uma pergunta e a resposta está ali, sem você precisar fazer mais nada.
No exemplo mais "chocante" do Arc, o CEO da empresa, Josh Miller conta que passa todos os dias por uma pracinha em Santa Monica e gostaria de saber sua história. Ele usa o app de iPhone do Arc, que compõe uma página com tudo o que ele precisa: história, fotos, lendas, dicas.
Momentos antes ele tinha usado cubos coloridos de madeira para explicar como funciona a web. Primeiro temos os navegadores, apps como o Chrome ou Arc. Depois os sites de busca. Em terceiro lugar, o conteúdo. Então ele mistura todos os blocos e diz:
Do nada, uma das maiores invenções da nossa vida apareceu: os LLMs [a IA generativa via modelos de linguagem], e eles nos oferecem a oportunidade de começar de novo, de pegar um navegador da web, um mecanismo de pesquisa e páginas da web e misturá-los em uma nova categoria de software. , um novo tipo de navegador que navega para você, como sempre deveria ter funcionado.
Bonito, né? Inspirador. Só que…
1) Um navegador web: o Arc Browser, uma coisa realmente nova e que tem outras funcionalidades como organização de abas e "agentes" que podem fazer coisas como reservas em restaurantes. Parabéns, eles construíram isso.
2) Um mecanismo de pesquisa: imagino que aqui eles pegam informações de vários sites de busca, misturam e classificam usando IA. Realmente um uso inovador, parabéns, eles construíram isso.
3) Páginas web. Opa.
Quem escreveu a página web? Quem pesquisou sobre a história da pracinha, tirou fotos, verificou fake news e tudo mais? Não foi a turma do Josh Miller, nem do Google.
Foram pessoas que até então tinham algum incentivo para publicar aquela página com a história do lugar. Seja para ganhar dinheiro com propaganda no site, pelo altruísmo coletivo da Wikipédia ou só pelo prazer de falar sobre seu bairro. Estas pessoas foram deixadas de lado. Josh Miller sorri para a câmera e mostra "olha que legal o que meu produto fez".
O Google vai liberar este jeito de "buscar" na web esta semana nos EUA, chamando de AI Overviews: a informação resumida antes dos links de busca. "Nos nossos testes vimos um aumento de satisfação dos usuários", declarou o CEO da Alphabet, Sundar Pichai em sua apresentação ontem. É claro que ficaram satisfeitos. Fazer buscas no Google está cada vez pior, com as IAs Generativas isso só vai ficar pior, com as máquinas-de-agradar-algoritmo cuspindo toneladas de conteúdo em busca do nosso click. O cliente é o Google, não eu.
Sabe aquele vídeo ensinando como consertar seu toca-discos feito para divulgar o serviço de manutenção de aparelhos de som? O Google googlou pra você.
Ótimo para nós. Péssimo para quem cria conteúdo.
Eu deveria achar irônico pensar que é este mesmo Google que os sites tanto tentam agradar é quem agora vai dizer "tudo bem, galera, não vou nem mandar as pessoas para o seu site". O tal do incentivo financeiro para se publicar conhecimento online vai tender a zero. (não que pague bem hoje em dia) Mas só acho triste mesmo, o fim da web. Havia um pacto não-escrito entre Google e quem publica conteúdo. Até o Google decidir reescrever as regras.
É o que Nilay Patel chama de "Google Zero". O cataclísmico dia em que a quantidade de tráfego vindo do Google para seu site vai ser zero. Poucos parecem acreditar neste dia, mas Nilay diz já ter preparado o site do The Verge para este momento.
Já Cory Doctorow e Rebecca Giblin chamam isso de Capitalismo de estrangulamento: quem controla o gargalo (e muda as regras como e quando quiser) tem o poder. Yanis Varoufakis chama de Tecnofeudalismo: quando os donos das "terras" (como os senhores feudais de outrora) não estão nem aí com a prosperidade de quem trabalha estas terras: só querem os tributos no fim da estação.
Mas veja bem. O sangue também está em minhas mãos.
Eu também estou matando a web um pouquinho a cada dia. É porque estou cansado de tantos títulos clickbait e artigos que fingem trazer uma grande novidade para, no fim, repetir o que eu já sabia. Comecei a usar, feliz, o app móvel da Perplexity. É só usar o "compartilhar link" para ele que o app resume a notícia, em português (…às vezes). Sem dar pageview. Sem imprimir um banner. Enfim, a hipocrisdias.
A qualidade do que é publicado online já é sofrível hoje. Como vai ser quando o incentivo econômico for menor ainda? No fim só devem sobrar os sites que não precisam ser lidos por humanos para "dar lucro"? (os que publicam fake news, bancados por aqueles que se beneficiam desta história)
Pensei que ao parar de gerar tráfego para os sites o Google estaria afetando seu próprio lucro, já que as propagandas mostradas nestes sites são gerenciadas e vendidas pelo "ad network" do Google, o AdSense. Mas pesquisando aqui (com ajuda de IA, claro) descobri que o AdSense representa só 10% das receitas da empresa — o mesmo que o Google Cloud. As propagandas direto nos resultados de busca são quase 57%. Também relevante: as receitas em busca aumentam a passos largos ano após ano, enquanto as de rede de anúncios estão estagnadas desde 2021.
Se é assim, quanto mais o Google mostrar os resultados direto na página de busca, mais valioso ainda vai ser anunciar direto lá, em vez de em sites de terceiros (ou investir em "content marketing"). Resta saber se este modelo vai se sustentar com o tempo. Quem vai gerar conteúdo novo? E não vou nem entrar na discussão de que como o Google vai decidir editorialmente qual ponto de vista publicar. O que sei é que seus executivos e advogados não vão mais poder alegar que são "apenas um agregador de informações" quando algo questionável aparecer em seus sites.
Veja bem. O Google I/O mostrou várias soluções que me deixaram pensando "Puxa, quero que isso seja liberado logo". (Por falar nisso, finalmente o Gemini Advanced está disponível em português) Foi legal assistir. Mas fico aqui pensando se, no fim, todos os avanços tecnológicos não são apenas soluções para problemas que a própria tecnologia criou. Como, por exemplo, todos os "resumidores de email" anunciados não só pelo Google, mas também pela Microsoft. Maravilhoso. Quero. Quantas vezes não pedi para o ChatGPT me escrever e-mails longos, descritivos e carinhosos?
Só que se é assim, no futuro (tipo… amanhã) vamos usar IA para escrever e-mails, que serão lidos por outras IAs e resumidos de volta. Em vez de só irmos direto ao ponto. Me fez lembrar a série Shogun e todos os rituais e mesuras "por gentileza ó grande líder que protege nosso reino, sou apenas um humilde servo desperdiçando seu tempo, mas vossa alteza real, o Sol da manhã, terceiro de seu nome, poderia me passar o sal?".
Por hoje é só
Cuidem de si, cuidem dos seus. Até a próxima.
crisdias
Sobre o resto... Eu só consigo pensar que toda novidade sobre tecnologia relacionada internet só me faz querer "sair da internet como ela é ou está ficando". Nada parece feito para pessoas de verdade, e até as cosias que são legais parecem mais precupadas em lucro e agradar acionistas e não em fazer uma internet melhor para as pessoas...
E é irônico isso vindo da Browser Company, me lembro quando eles anunciaram o Arc! Eu pensei "Que foda! Realmente algo novo e com uma proposta que faz todo o sentido!", repensar o navegador, algo que ninguém tava fazendo a decadas! Incrível! E aqui estamos com mais um app que mergulha em AI e LLMs como o santo gral sem ninguém ter pedido por isso.
Realmente a internet parece ser o lugar em que só vai sobrar IAs conversando. 😮💨
Sobre a correria X-men, minhas teorias são:
1. Orçamento: fazer uma animação tradicional de qualidade pode ser um dos motivos de só 10 episódios e, consequentemente, resumir arcos pra caber e dar retorno.
2. "Queremos chegar no hoje": sinto que apesar de muito bem feita essa temporada estava mais interessada em conquistar publico (retornando ou novo) para estabelecer quem são os Mutantes até chegar no status atual deles. Só impressão minha.
Enfim, fiquei com esses sentimentos muito mais doque algo feito pra ser agil pra geração tico-teco que não aguenta ver vídeo de mais de 1 minuto (o que até o tik-tok sabe que não é 100% verdade com seus formatos longos).