Não aguento mais não aguentar mais: introdução
Burnoutinho, seu amiguinho.
Burnout é uma sensação generalizada de que você está tentando construir uma fundação sólida em areia movediça.
— Anne Helen Petersen
Hora de começar nossa jornada em Não aguento mais não aguentar mais, de Anne Helen Petersen, o livro da vez do Clube de Cultura do Boa Noite Internet. Vamos na rodada desta newsletter com o prefácio da edição brasileira, a nota da autora sobre a Covid-19 e o já tradicional capítulo de introdução deste tipo de livro, onde a autora descreve sua “tese básica”.
Como sempre, aqui vai meu resumo-comentado. Ou seja, coisas que estão no livro junto com meus pensamentos e opiniões — que você não precisa concordar. O importante é participar nos comentários.
Prefácio da edição brasileira — Por Renata Corrêa
O prefácio escrito por Renata Corrêa — que também tem newsletter! — é um texto que merece ser lido na íntegra, até por ser curto e direto ao ponto. Ela já deixa claro o que vem por aí sem pegar leve e apontando os culpados pela epidemia de burnout desta geração: o capitalismo em sua fase mais aguda, a dissolução dos direitos trabalhistas e a transformação de cada indivíduo em uma “empresa de si mesmo”. Se você é do tipo de pessoa que tem coceiras sempre que alguém culpa o capitalismo por problemas da sociedade, sugiro cancelar a assinatura porque o livro vai ser todo assim. Os problemas que nos trouxeram aqui são vários, mas o capitalismo (antigo e atual) toca em todos.
Corrêa narra sua própria experiência com o esgotamento, quando — mesmo tendo uma “vida normal” e um “emprego dos sonhos” — literalmente não conseguiu se levantar da cama. Para ela, o problema é, ao mesmo tempo, pessoal e estrutural. Estamos vivendo em um ponto da história onde as promessas de mobilidade social através da educação se revelaram uma mentira, e os millennials brasileiros se viram trabalhando em múltiplos empregos precários enquanto constroem meticulosamente avatares digitais infalíveis que determinam seu sucesso profissional e afetivo.
Assim como pretendo fazer aqui no clube, ela traça paralelos entre a realidade estadunidense descrita por Anne Helen Petersen e o contexto brasileiro, mostrando como os millennials nasceram nos primeiros anos de uma democracia frágil, vivendo a inflação, privatizações e o sucateamento do ensino público. Após um breve período de esperança com a democratização do acesso à universidade, o tapete foi puxado dos seus pés por uma pandemia mortal e um governo negacionista neoliberalóide. A autora destaca como (millennials ou não) caímos no golpe das soluções individuais para enfrentar violências sistêmicas — desde o “batom empoderado” até a famosa culpa por não fechar a torneira enquanto empresas desperdiçam milhões de litros de água.
O cenário não é dos melhores, mas o prefácio termina com uma nota de esperança, mesmo que cautelosa: reconhecer o golpe é o primeiro passo para garantir que ninguém mais caia nele, e a resistência só é possível por meio de soluções coletivas que contemplem não apenas os privilegiados, mas todos que dividem esse nosso planetinha.
Nota da Autora
Aqui, Anne Helen Petersen contextualiza que o livro foi lançado (e terminou de ser escrito) nos primeiros meses da pandemia de Covid-19, deixando claro que não vai tentar remendar o texto para o “deixar atual”. Que bom! Porque o resultado, cinco anos depois, é um livro que transcende a especificidade de 2020 e se mantém relevante.
A pandemia funcionou como um holofote gigante, iluminando o que já estava quebrado: trabalhadores “essenciais” tratados como descartáveis, décadas de racismo estrutural, o falido sistema de saúde estadunidense e a incompetência da liderança federal. Para os millennials, nada disso foi surpresa — a geração já estava condicionada à precarização muito antes do vírus chegar.
[Compreendemos] que os clichês que repetimos — que os Estados Unidos são uma terra de oportunidades, uma superpotência mundial benevolente — são falsos. Essa é uma conclusão profundamente chocante, mas também é uma conclusão a que pessoas que não vivem com os privilégios da branquitude, da classe média e da cidadania americana já chegaram há algum tempo. Algumas pessoas só agora estão percebendo a profundidade de nossos problemas. Outras sabem disso, e sofrem por isso, a vida toda.
Essa narrativa do “melhor país do mundo” foi o principal produto de exportação estadunidense por décadas, consumido tanto interna quanto externamente. Os EUA eram de fato “o melhor do mundo”… para algumas pessoas. Petersen até faz parte deste grupo privilegiado branco, e a crise millennial serviu para mostrar a ela e outros como ela, que esses privilégios acabaram — ou ficaram restritos ao famoso 1% dos CEOs bilionários. Me lembra o famoso poema:
Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado —
porque não era socialista.Então, vieram buscar os sindicalistas, e eu fiquei calado —
porque não era sindicalista.Em seguida, vieram buscar os judeus, e eu fiquei calado —
porque não era judeu.Foi então que eles vieram me buscar, e já não havia mais ninguém para me defender.
— Martin Niemöller
Enquanto alguns entendem que era tudo uma ilusão, outros buscam desesperadamente uma volta ao passado e me peguei pensando que o lema de Trump é justamente: Make America Great Again. Antigamente, políticos prometiam construir escolas ou asfaltar ruas. Agora prometem sentimentos.
Por isso, gostei que tanto Petersen quanto Renata Corrêa no prefácio já entregam o antídoto da grande crise global de burnout: pensar coletivamente. Parar de olhar apenas para o próprio umbigo, acabar com esta epidemia de individualismo.
Não estou falando de uma utopia exatamente. Estou falando de outra maneira de pensar sobre trabalho, sobre nosso valor pessoal, sobre incentivos ao lucro — e da ideia radical de que cada um de nós importa e de que cada um de nós é essencial e merecedor de cuidado e proteção de verdade. Não pela nossa capacidade de trabalhar, mas simplesmente por existirmos. Se você acha que essa ideia é radical demais, não sei o que fazer para que se importe com as outras pessoas. […] A verdade mais ampla que essa pandemia nos fez enxergar é que não é uma única geração que tem problemas, que está fodida ou que falhou. O problema é o próprio sistema.
Introdução
Eu sei em que dia entendi que o que tive foi burnout. 29 de maio de 2019, quase 1 ano exato do meu último dia como funcionário do Facebook.
Eu estava em um Uber na Avenida Sumaré e o rádio noticiou que, na véspera, a Organização Mundial de Saúde havia determinado que o burnout entrasse para a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (o famoso CID). A reportagem deu uma lista de sintomas do burnout e eu percebi que… gabaritei. De todos os listados, o que lembro até hoje é o de, no meio da crise, entender claramente que se eu não me mover e começar a agir, as coisas vão ficar ainda piores mais para frente e ainda assim seguir paralisado. “Vou ser demitido se não começar a fazer os projetos que estão comigo. Mas tudo bem, hoje não. Amanhã eu melhoro e começo.” — enquanto olhava para o teto do escritório, sentando na minha caríssima cadeira Herman Miller. O mesmo que eu fazia todos os dias: olhar para o teto e dizer “hoje não”.
Demorei um ano para entender porque, na minha cabeça, o que eu tinha era outra coisa. “Burnout” não era uma palavra nova para mim. Eu já tinha lido sobre o assunto, cheguei até a escutar o Mamilos sobre o tema um ano e meio antes daquele 29 de maio. Burnout, na minha cabeça, era um colapso, uma represa que finalmente estoura, uma explosão. Não era o meu caso, poxa! Eu gostava do meu trabalho, nunca virei noite, viajava de classe executiva, fazia ioga pago pela empresa, tinha tudo do bom e do melhor, olha essa cadeira, que incrível!
Então entendi que burnout é outra coisa. E que eu tinha esta tal coisa.
Na introdução de Não aguento mais não aguentar mais, AHP começa narrando sua “experiência de guerra”, não muito diferente da minha. Estava tudo dando certo para ela. Era jornalista no BuzzFeed, corria o país cobrindo histórias importantes, escrevendo milhares de palavras por dia.
O trabalho era necessário e surpreendente — e exatamente por isso era tão difícil parar.
Quando seu editor sugeriu que talvez ela estivesse com burnout, a reação foi de ofensa. Como assim burnout? Ela só estava sendo muito produtiva. Mas os sinais estavam lá: chorar em ligações com editores, sentir-se entorpecida, a lista de tarefas básicas da vida que simplesmente não saia do lugar, só crescia: levar as facas para afiar, encontrar o selo para conseguir o registro correto do seu cachorro, enviar um presente atrasado para um amigo. Tarefas de alto esforço e baixa recompensa que se tornaram impossíveis. Ela batizou este sentimento de “paralisia das tarefas” (“errand paralysis” no original).
A OMS define a síndrome de burnout como um fenômeno ocupacional caracterizado por três dimensões: sentimentos de esgotamento ou exaustão de energia; distanciamento mental aumentado do trabalho ou sentimentos de negativismo e cinismo; e eficácia profissional reduzida. Mas AHP vai além dessa definição clínica:
A exaustão sentida no burnout combina um desejo intenso por um estado de completude com a sensação torturante de que essa completude nunca será alcançada, que sempre há alguma demanda, ansiedade ou distração que não pode ser silenciada. Você sente o burnout quando exauriu todos os seus recursos internos, mas não consegue se libertar da compulsão nervosa de seguir em frente apesar disso.
[…]
O burnout está em uma categoria bastante diferente da “exaustão”, embora as duas condições estejam relacionadas. Exaustão significa ir até um ponto em que não é possível ir além; burnout significa chegar a esse ponto e se forçar a continuar, por dias, semanas ou anos. Quando você está em meio a uma crise de burnout, a sensação de conquista ao fim de uma tarefa exaustiva — passar na prova ou terminar um grande projeto no trabalho — nunca vem.
É a sensação de que você mal está mantendo a cabeça fora d’água e que mesmo a menor onda pode afundar você e toda sua família. É a redução da vida a uma eterna lista de tarefas que precisam ser priorizadas a cada segundo. É a a fogueira da mente virando cinzas, burning out.
Em outras palavras, o lema que ficava literalmente nas paredes do Facebook: foco no impacto. Só que tudo é impacto.
Um ano e quatro meses após sair do Facebook, virei head of content do BuzzFeed Brasil — lugar onde AHP trabalhava e havia acabado de hitar com seu artigo que inspirou este livro. Uma das palavras muito usadas nas nossas conversas e até em projetos era adultar, ou adulting em inglês. Chegamos a gravar o piloto de um podcast com este nome para tentar vender para algum cliente (mas veio a pandemia…).
Não mais “viramos adultos” ou “amadurecemos”. Adulto não é uma coisa que se é, mas algo que se faz.
O Millennial moderno, em grande parte, vê a vida adulta como uma série de ações, em vez de existência. Assim, adulting, algo como adultar, se transforma em verbo.
Existem três tipos de adulting que nos paralisam: as que nunca fizemos antes (fazer o Imposto de Renda), as que custam dinheiro sem serem divertidas (comprar aspiradores) e as desnecessariamente labirínticas (encontrar um terapeuta, cancelar a academia, pedir reembolso no plano de saúde). A vida moderna consegue ser, ao mesmo tempo, mais fácil do que nunca e absurdamente complicada. Mas a paralisia vai além das tarefas.
A verdade era que todas essas tarefas tirariam o tempo daquilo que se tornara minha tarefa definitiva, a tarefa definitiva de tantos outros Millennials: trabalhar o tempo todo. Onde eu tinha aprendido a trabalhar o tempo todo? Na escola. Por que eu trabalhava o tempo todo? Porque morria de medo de não arrumar um emprego. Por que eu trabalhava o tempo todo mesmo depois de arrumar um emprego? Porque morria de medo de perder o emprego e porque meu valor como funcionária e meu valor como pessoa haviam se misturado de forma irremediável. Eu não conseguia evitar a sensação de precariedade — de que tudo pelo que eu trabalhara tanto poderia desaparecer — ou conciliá-la com uma ideia que me cercava desde a infância: que, se eu trabalhasse o suficiente, tudo daria certo.
A precarização — ou “uberização de tudo”, onde só ganhamos por empreitada, quando estamos produzindo — causa a constante sensação de que vamos passar fome a qualquer momento. Nossos pais trabalharam décadas na mesma empresa. Já nós, hoje, vivemos sob a ameaça constante da demissão, da obsolescência, do algoritmo que muda e elimina nossa fonte de renda. O sistema precarizado é “bom para os negócios” porque nos mantém em estado permanente de medo — e, assim, topamos qualquer condição de trabalho.
Petersen traça uma genealogia do burnout: desde o “cansaço melancólico do mundo” mencionado em Eclesiastes, passando pela “neurastenia” do século XIX (exaustão nervosa causada pelo “ritmo da vida industrial moderna”), até chegar ao burnout contemporâneo — diferente em intensidade e frequência. Hoje, o burnout atinge todos: trabalhadores com horários imprevisíveis que complementam renda como Uber; funcionários de startups com refeitórios chiques, mas que ficam horas no trânsito do trajeto; pesquisadores que dão aula em quatro universidades e vivem de auxílios e cupons de descontos; frilinhas com liberdade de horário, mas sem plano de saúde, sem falar nos “CEOs de MEI”. O burnout se tornou nossa condição contemporânea.
Para os millennials, a promessa era simples: estude, trabalhe duro, seja uma boa pessoa e seu futuro será de estabilidade. Mas eles são a primeira geração desde a Grande Depressão em que muitos vão acabar em situação pior que a dos pais. Afogados em dívidas estudantis (a média é de 37 mil dólares nos EUA), pagando fatias cada vez maiores da renda com aluguel e creche, sem conseguir guardar dinheiro, sofrendo mais de ansiedade e depressão.
A maioria de nós preferiria ler um livro a ficar mexendo no celular, mas estamos tão cansados que rolar timelines sem pensar muito é tudo que temos energia para fazer.
[…]
Temos que trabalhar muito, mas, ao mesmo tempo, demonstrar “equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional”. Temos que ser mães atentas, mas sem ser superprotetoras. Temos que ter relacionamentos igualitários com nossas esposas, mas ainda manter nossa masculinidade intacta. Temos que construir nossas marcas nas mídias sociais, mas tendo vidas autênticas. Temos que estar atualizados, estudados e decididos sobre qualquer nova notícia que apareça, mas, de alguma forma, sem deixar que a realidade afete nossa capacidade de fazer qualquer uma das tarefas acima.
O artigo original de Petersen sobre millennial burnout teve mais de 7 milhões de leitores, mas ela reconhece uma limitação crucial: falava principalmente da experiência branca de classe média. Como aponta Tiana Clark em sua resposta, “This Is What Black Burnout Feels Like”, o esgotamento tem camadas diferentes de intensidade conforme raça, classe e origem. Clark escreve que o burnout “tem sido o estado perpétuo das pessoas negras neste país há séculos”. Não é apenas cansaço mental — mulheres negras têm telômeros (estruturas que protegem nossos cromossomos e controlam o envelhecimento) equivalentes aos de mulheres brancas 7,5 anos mais velhas — ou seja, o estresse do racismo literalmente envelhece o corpo mais rapidamente. E o autocuidado necessário para lidar com tudo isso custa caro: Clark gasta 500 dólares por mês com terapia, personal trainer, coach — privilégios que muitos não podem pagar.
Para millennials negros, latinos, imigrantes, LGBTQ+, o burnout não é apenas uma paralisia de tarefas. É ter que provar constantemente sua humanidade dentro e fora do trabalho. É ter medo de pedir qualquer coisa para não ser vista como “difícil”. É sempre dar gorjeta acima de 20% para não reforçar estereótipos. É segurar o xixi em viagens pelo sul dos EUA quando há bandeiras confederadas no posto de gasolina.
Petersen reconhece:
Este livro nunca conseguirá abarcar todas as versões da experiência dos Millennials, mesmo os brancos de classe média. Não estou abdicando dessa responsabilidade, mas estou fazendo a seguinte declaração: isto é o começo da conversa e um convite a conversarmos mais.
Burnout não é um problema individual que vai ser resolvido com aplicativos de produtividade, bullet journals, máscaras faciais ou água alcalina vendida por celebridade. O Sistema não apenas tolera o burnout — ele o exige. Em vez de lutar contra isso, muitos encaram com conformidade (“é assim mesmo, é o game”) ou como vantagem competitiva sobre colegas mais velhos. Aceitar isso é aceitar que nossa única função é gerar valor para os outros.
A única maneira de seguir em frente é criando um vocabulário e uma estrutura que nos permitam ver a nós mesmos — e aos sistemas que contribuíram para o nosso burnout — de forma clara.
O primeiro passo é entender que burnoutar não é uma questão de fraqueza pessoal ou falta de resiliência. É apenas viver em um sistema que transformou a precariedade em norma e o medo em motivador. O trabalho constante não pode ser a única forma aceitável de existência. Este livro está aqui para entender estes mecanismos.
Como nossos pais exemplificaram e apoiaram a ideia do trabalho como algo completamente dominador? O que internalizamos como o propósito do “lazer”? O que aconteceu na graduação que exacerbou minhas tendências workaholic? Por que eu me senti ótima escrevendo minha dissertação durante o Natal?
A resposta está na completa dominação do trabalho em nossas vidas, onde até o descanso precisa ser produtivo e o lazer precisa gerar conteúdo. Onde ser visto como preguiçoso é o pior dos pecados, numa cultura estadunidense que transformou a ética profissional em religião — trabalhar é ético, é a conexão com Deus, a chave para o Paraíso. O que, portanto, leva os brasileiros a serem vistos como improdutivos e selvagens, sem ética porque não trabalhamos o tempo todo. (E o orgulho paulistano de ser a Locomotiva do País.)
Pode não parecer muita coisa, mas reconhecer o problema como estrutural, não individual, é revolucionário. É uma confirmação e uma declaração: não precisa ser assim.
Agora é com você
Eu nem vou perguntar se você já teve burnout. Quantos? Como foi? Entendeu na hora? Já saiu? Quais seus truques para não ter mais um?
Abre o jogo nos comentários.
Espero que você tenha gostado deste resumo comentado. A seguir, o capítulo 1, “Nossos pais com burnout”, vulgo “a culpa é dos boomers”, contando como o pessoal que adorava dizer que “millennials destruíram tudo” foi quem realmente destruiu tudo — e por quê.
Até lá,
crisdias