Jornalistas "sérios" e sua eterna implicância com creators
É sua primeira vez neste tipo de treta? Olá, eu serei seu guia.
Desde que a internet é internet tem alguém tentando desqualificar o trabalho dos nativos digitais. Estou nessa bagaça tem 24 anos — mais tempo se você contar meu Geocities falando dos CDs que eu ouvia. Já vi blogueiro ser comparado aos tais macacos sentados em uma máquina de escrever tentando ser Shakespeare. Teve também as jornalistas de moda reclamando que blogueira não podia entrar na SPFW, como bem lembrado por uma amiga no Zap. Já fui contratado pelo YouTube para fazer Um Grande Canal de TV Esportivo cobrir de forma nativa-digital uma Copa do Mundo — e meu trabalho acabou sendo ficar ouvindo os gritos dos diretores do canal de que aquilo ali não era palhaçada, era jornalismo sério. É um ciclo, é só eu esperar que ele volta.
A polêmica da semana na internet — aquela que quando a gente botar o telefone de volta no bolso deixa de existir — é que os apresentadores do maior podcast do país não se prepararam para duas entrevistas, das mais de 500 que já fizeram. Do nada acharam duas entrevistas já antigas — umas de 2022 — e o recalque resolveu sair do armário.
Isso sempre me soa como "Não é justo, eles estão no topo, nós não". Eu sei do que estou falando, eu já critiquei o Podpah. Como pode? Estou aqui tem anos e os caras, do nada, chegam no topo? Não é justo. Aí eu fui ouvir e entender.
Eu costumo brincar que escrevo melhor quando estou com raiva. Em 2019 mesmo, na volta anterior da polêmica "podcasts brasileiros são ruins" eu cometi um desses textões, que eu vou colocar abaixo, a versão original fica no Medium, que de lá pra cá apertou o paywall. Você vai ver que é a mesma história de agora, mudam os personagens, mas os papéis são os mesmos. De um lado “jornalistas sérios” acusando criadores digitais de fazer um trabalho “menor” — sendo que o critério do que é “sério” é o dos jornalistas, é claro. Do outro pessoas que lutaram para conquistar seu público — e que nem pediram para serem chamadas de jornalistas.
Eu só acho engraçado que o Brasil tem zilhões de “podcasts de entrevista” falando besteira todo dia. De defesa ao nazismo a conselhos danosos de investimento. Mas os “despreparados” são dois caras que vieram da quebrada, falam de temas progressistas e cresceram, entre outros motivos, porque seu público se viu ali na tela, coisa que não encontravam em outro lugar, que convidam para a mesa gente que não era convidada em nenhum outro lugar. Como já falei em um Braincast distante, estou cansado desse fogo amigo, movido pela fogueira das vaidades.
É normal. É só o status quo sendo defendido. Espero encontrar você na próxima vez que este tipo de treta acontecer.
Por que podcasts brasileiros são ~piores~ que os americanos?
Originalmente publicado no Medium em 26 de junho de 2019.
Quando eu tinha 15 anos o professor de português da escola, nem lembro mais o nome da figura, se achava O Engraçadão. Eram os anos 80, mas se fosse hoje ele ia dizer que é “politicamente incorreto”, mas lá atrás com o Brasil ainda saindo de uma ditadura militar e a gente estudando em uma escola administrada pela Aeronáutica, era só esquisito mesmo. Ele saía agredindo todo mundo sem ninguém ter perguntado nada e no final dava uma risada, provavelmente tentando mostrar que só queria fazer graça.
O ano era 1988 e a molecada estava animadíssima com os Jogos Olímpicos de Seul, o primeiro com americanos e soviéticos competindo juntos desde 1976. O professor-comediante então resolveu fazer sua rotina de apresentador de talk-show americano e dizer que o Brasil nem devia mandar ninguém pro outro lado do mundo, porque se não for pra ganhar medalha de ouro era melhor economizar o dinheiro. Ele defendia que só se devia mandar quem fosse realmente bom e a gente, brasileiro, não era bom. Bons eram os americanos e o pessoal da Alemanha Oriental.
A turma tentava argumentar que os nossos atletas precisam se preparar, ganhar experiência internacional, ir melhorando, mas ele era o tipo de pessoa que acha que alguém ou é bom ou é ruim, já nasce assim e fim de conversa. Ele era o professor e tinha, pelas regras da escola, o poder de dar notas pelo critério que quisesse. Eu era da turma CDF — os melhores alunos do ano separados em uma sala pra não sermos “atrapalhados” pelos bagunceiros — e como ninguém queria perder pontos só por causa de uns atletas que ninguém conhecia direito, seguimos com a vida.
Foi dessa história que eu lembrei quando me mandaram ontem o thread do Twitter de um editor internacional da Folha de São Paulo, Daigo Oliva, dizendo que foi ouvir podcasts brasileiros e depois de 20 programas classificou a experiência como insuportável. Ele explica que os podcasts brasileiros ainda estão muito longe dos programas preferidos dele, produzidos nos EUA. Ele comenta que o problema não é a “qualidade”, mas sim o formato e que os elencos de podcasts brasileiros são amadores.
Eu, como um dos primeiros produtores de podcast do Brasil, apaixonado pelo formato e profissional que tenta viver disso hoje também tenho a minha opinião e como estamos na internet, vim aqui fazer um textão e ninguém pode me impedir. Ela é até parecida com a do jornalista, olha só. Eu também já estou cansado do formato mesacast que domina o Brasil, mas discordo da abordagem que ele usou pra justificar sua opinião.
Mais que isso: eu sei o motivo de os podcasts brasileiros serem assim.
Então, fingindo (sonhando alto) por um instante que eu estou no This American Life, o podcast que inventou 1000 podcasts, eu vou dividir essa história em 3 atos.
Ato 1 — Production value!
Eu já comentei no meu podcast que eu sou americanizado pra caramba. Acho que é porque eu via TV demais quando era criança. Eu precisei ir morar nos EUA pra tirar um pouco isso de mim, por ver que a vida americana não é o que passa na Sessão da Tarde. Ainda assim, eu ainda sou americanizado o suficiente pra ter sido criado ouvindo podcasts americanos, programas como Radiolab, 99 Percent Invisible, This American Life, Freakonomics Radio, etc. Ele são incríveis, absurdamente bons, a melhor coisa que se faz em conteúdo recorrente, em qualquer meio, no mundo.
Tanto é que uns 4 ou 5 anos atrás, quando eu comecei a ouvir esses programas todo dia, eu desisti de criar um podcast meu. Porque se não é pra ganhar a medalha de ouro que nem esses caras, ops, se não for pra ter um programa assim, com essa qualidade, é melhor eu nem tentar.
Não é que eu não seja bom, inteligente, articulado, nada disso. Como eu nessa época já trabalhava com audiovisual, eu sabia que o meu problema não era de capacidade individual, era de produção. Se você ouve um Radiolab até o fim vai ouvir uma lista de vinte nomes. E esses são só os produtores, não tem aí a galerinha do financeiro, o rapazinho do TI, nada disso. 20 pessoas, trabalhando em tempo integral, todos os dias da semana, pra fazer o podcast mais bem produzido do mundo.
Na thread o Daigo sugere um livro-HQ muito bom sobre o processo de produção de um podcast. Eu segui o conselho dele e fui ler. O livro é bom mesmo. Eu fiz até mais, eu fui lá no site do This American Life e paguei US$ 2 pra comprar a história original, Radio: An Illustrated Guide, que detalha o processo de produção do programa em 1998. Os livros contam uma história que eu já tinha descoberto lá atrás, quando eu saí que nem um louco tentando descobrir como eles fazem isso???. Eu descobri, entre outras coisas, que um episódio padrão de um programa desses leva, em média, cinco semanas para ir do “essa é a pauta” até o seu tocador de podcasts. Toda semana. Por 24 anos.
Fazer podcasts “Ira Glass Style” dá trabalho, precisa de gente e precisa de dinheiro. O Ira, que dá pra gente dizer que é o “podcaster mais bem-sucedido do mundo” conta que até hoje trabalha até tarde nos finais de semana, acertando detalhes do programa.
Isso não é coisa de americano. O melhor podcast brasileiro do ano passado é justamente da Folha, o Presidente da Semana, e teve duas pessoas, dedicadas por um ano, se matando pra botar o programa no ar toda semana. Pessoas que não precisavam se preocupar em como iam pagar suas contas, em ficar no Instagram fazendo post pra divulgar o trabalho e tentar cavar uma campanhazinha pra ajudar nos boletos, nem nada disso. Eles sabiam que a Folha Corporation ia depositar os salários e benefícios todo fim de mês e podiam dedicar toda a experiência acumulada em suas carreiras no jornalismo pra fazer um conteúdo incrível. Aliás, no meio da temporada o editor Victor Parolin saiu de férias. Ainda assim o programa seguiu normalmente, com outra pessoa no seu lugar.
Quando eu parei para fazer o segundo episódio do meu programa, “Você não é o seu crachá”, que segue esse formato mais americano e é um dos preferidos dos ouvintes, eu levei uma semana só editando o programa, sem contar o tempo de pesquisa e entrevistas. Tudo bem, era a primeira vez que eu estava fazendo aquilo, aprendendo com o trem em movimento, mas ali eu entendi na prática que eu, sozinho, não ia conseguir botar um programa desse tipo no ar toda semana. Um dia eu chego lá.
Então se você quer que os podcasts brasileiros consigam sair por aí fazendo pesquisa profunda, entrevistando pessoas, botando efeitinho sonoro e trilha original, apoie seu podcast preferido. De preferência o meu, por favor. Se você controla o dinheiro de uma marca, patrocine um podcast. Eu vou ser leviano aqui — afinal de contas estamos na internet, se não for pra ser leviano melhor nem levantar da cama — vou inventar um dado e dizer que no máximo 10 podcasts no Brasil pagam suas contas só com o podcast. E olhe lá.
Ato 2 — Eu vou pra Galera
Eu sempre levo comigo, no celular e no desktop do meu computador, uma imagem que eu gosto de apresentar pros clientes, pra criar um suspense, como “a imagem que sintetiza tudo o que você precisa saber sobre podcast no Brasil”. Ela é uma tuitada e me foi apresentada pelo Raul, o operador de áudio dos Estúdios inovaBRA Habitat, onde a gente grava os nossos podcasts.
O mesacast é o formato mais popular do Brasil por uma série de motivos. O primeiro é consequência da falta de grana de produção falada no primeiro ato desse textão aqui. Esse é o formato mais barato de fazer e editar. Pessoas sentadas em volta de uma mesa conversando em uma “mesa de bar”. Acabado o papo é só podar o início e fim da gravação, botar no ar e seguir pra semana seguinte. O Braincast só voltou a ser um podcast semanal, lá em 2012, por uma escolha de produção. “A gente vai sentar aqui, apertar o REC e o que for dito foi dito, não editamos nada, senão isso nunca vai pro ar.”
O mesacast brilha muito porque se aqui no Brasil a gente não tem o dinheiro das rádios americanas, o podcast só pode ser feito por um tipo de pessoas: os amadores. Aqueles que amam o que fazem e o assunto que abordam. A gente faz no amor, literalmente. “Podcast no Brasil é feito por um bando de amadores”. Obrigado por reconhecer. Se a gente fosse profissional já tinha pedido demissão. Quer ver? Pega aí o seu mesacast favorito. Os grandões mesmo. A maioria das vozes que você ouve ali não estão recebendo nada pra participar do programa.
Só que o mesacast é mais do que uma grande bagunça amadora, ele é o que essa imagem que eu levo no bolso explica tão bem. Podcast brasileiro é da galera. Eu quero ouvir e me sentir parte de alguma coisa, de uma turma do barulho que apronta altas confusões. Até no Boa Noite Internet, que é roteirizado e basicamente sou eu falando pra um microfone, eu fico quebrando a cabeça pra descobrir como eu gero esse senso de comunidade. Nos primeiros meses da Ampère nosso slogan era “nós criamos comunidades”.
O This American Life é maravilhoso, quando eu crescer eu quero ser o Ira Glass, mas o This American Life não é uma comunidade. Você não se sente “parte” da galera do programa. Eu aposto que o Ira Glass ou o Roman Mars não recebem mensagens de ouvinte dizendo “eu fico ouvindo e me sinto como se eu estivesse ali sentado com vocês”. Eu recebo. O programa deles existe pra contar uma história envolvente, os podcasts no Brasil servem pra gente se sentir parte de uma comunidade.
Podcast brasileiro é sujo, é cheio de erros, é pra gaguejar sim, é pra falar um por cima do outro. Sabe o que é assim? A vida. Só que tem o seguinte: o segredo dos maiores podcasts do Brasil é fazer isso de maneira profissional. É ser tão espontâneo e bagunçado como o cabelo de uma feminista francesa em um filme de 1960. Dá muito trabalho fazer parecer que não deu trabalho.
Um dos caras que recebe menos valor do que devia no mundo dos podcasts se chama Carlos Merigo. Eu confesso que eu mesmo demorei alguns anos pra entender a função dele. Uma piada interna do Braincast ainda é até hoje “Pauta? Eu não leio pauta, cara! Aqui é improviso, é naturalidade!” Mas ele lê. Ele passa horas escrevendo e pensando a pauta. Aí toda semana ele senta na frente do microfone e da mesa de som e rege a gente como o maestro de uma orquestra, ou como um caubói tocando uma manada de gatos, pra ser uma analogia mais perto da verdade. Se não tivesse o Merigo ali, aí sim ia ser o caos instaurado na Terra. É tão bem feito que você não nota.
E, olha só, os americanos estão indo pelo nosso caminho. Podcasts como Chapo Trap House são um sucesso gigante, lotam teatros, vendem livros, seguindo exatamente o formato de “cinco esquerdopatas conversando em volta de uma mesa”. Quero ver alguém dizer que Chapo não é bom. Bom, alguém que não seja de direita, é claro.
Ato 3 — Todo ano é o ano do podcast no Brasil
Quando eu voltei a morar no Brasil, em 2003, eu virei o tipinho irritante que fala que passou a valorizar as coisas bem brasileiras. Mas é sério. Eu valorizava até as coisas 100% ruins, como estacionar o carro em cima da calçada no bairro suburbano aonde eu voltei a morar. Porque Brasil é Brasil, não é EUA, nem Canadá, nem Noruega. A gente vai ter que fazer as coisas do nosso jeito. Não dá pra ser que nem o meu professor de português e querer nos comparar com o que acontece lá fora, onde há mais gente alfabetizada, dinheiro, infraestrutura e até mesmo, no caso dos podcasts, toda uma rede de rádios públicas produzindo programas com o dinheiro de doações. Mas que comunistas!
Meus dois escritores favoritos no mundo são o Malcolm Gladwell e o Michael Lewis, que escrevem em publicações como a New Yorker e The Atlantic. Se quando eu crescer não der pra ser o Ira Glass eu me contento em ser que nem um desses dois. Eles escrevem textos lindos, pensados, que levaram meses pra irem para o papel. Mesmo quando eles ainda não eram super famosos, publicavam só um texto por mês, mas que texto. Ainda assim eu não saio por aí dizendo que a experiência de ler a Folha de São Paulo é insuportável, que boa mesmo é a New Yorker. Apesar de serem o mesmo meio, texto, eu sei que são coisas diferentes.
Meu podcast não é mesacast, porque eu adoro desafios criativos de fazer uma coisa que nunca foi feita. Mas também não é nenhum 99pi, porque eu ainda tenho muito feijão pra comer pra um dia ser o Roman Mars. Nem tem como, já que ele começou estagiário de uma rádio, depois foi subindo na cadeia alimentar e só depois chegou no seu próprio programa, que está aí tem quase 9 anos sendo o meu podcast preferido, que o app já baixa automaticamente. Nossas jornadas são diferentes, quem dera eu morar em beautiful downtown Oakland, California.
Outro dia um ouvinte me mandou o link pro podcast dele. “Ouve aí e me diz o que achou”. Eu comecei a ouvir do mais recente, acho que era o décimo episódio. Curtinho, legal, formato “palestrinha” que nem o meu. No encerramento ele manda “Queria agradecer a todo mundo que está ouvindo. Chegamos na marca de 200 episódios ouvidos em todos os tempos, que é muito mais do que eu podia imaginar, muito obrigado a todos.” Esse é o verdadeiro podcast brasileiro. O cara tem 20 ouvintes por programa e é pura gratidão.
O podcast no Brasil hoje é o melhor podcast que dá pra se fazer no Brasil e é feito por gente que se sente privilegiada de poder estar contando histórias pra 20 ou 1 milhão de pessoas toda semana.
Dá pra melhorar? Claro que dá. Essa é a parte divertida da coisa.
Boa noite internet, boa noite Brasil. Por hoje é só.
Não, pera, eu não tô no meu podcast!
Força do hábito, foi mal.
Quando eu vi essa história toda de que o formato de podcasts brasileiros é ruim eu pensei “Vou responder em forma de podcast”. Só que o meu melhor amigo, cunhado e sócio Alexandre Maron já fez isso, porque ele também é apaixonado por contar histórias. Ouve lá o Zing. Não é mesacast. Quer dizer…