Hollywood vai determinar o futuro do trabalho na era da IA
Há muito mais em jogo do que a data de retorno das nossas séries favoritas: se vamos receber pelo fruto do nosso trabalho ou apenas para alimentar a IA.
Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro.
— José Saramago
Da última vez que tivemos uma greve de roteiristas em Hollywood, em 2008, o mundo era outro. A começar pelo fato de que foi juntamente 2008 um famoso "ano que nunca acabou", com a crise financeira com efeitos sentidos até hoje. O streaming era o ponto mais importante da greve, mas ainda era uma promessa. O cinema ainda era a mídia mais importante e ainda estávamos começando a ver a tendência de fazer os mesmos filmes de novo e de novo, a Era das Franquias.
Acordos foram feitos, contratos assinados e tudo voltou ao normal. Agora, em 2023, temos uma nova greve que, desde ontem, também teve a adesão do sindicato dos atores — que não entra em greve desde 1980. Estas greves não deveriam ser importantes para nós aqui, os tais dos reles mortais. Tá, aquela série esperada pode demorar para sair, mas o que eu tenho a ver com isso?
É que desta vez a discussão é sobre IA e as coisas sendo propostas pelos donos de Hollywood não são exclusivas de quem vive da arte. E como venho repetindo aqui sempre que falo sobre IA, não é um problema de tecnologia, mas de sociedade. Do valor de uma pessoa, literalmente valor, financeiro.
Dentre as propostas mais absurdas (até agora, né? cada dia vai piorando) vem a história de que figurantes de filmes e séries receberão por 1 dia de trabalho (que já é uma mixaria) para terem seus corpos escaneados. A partir daí, para sempre, os estúdios podem usar estes dados para criar personagens sintéticos para preencher o fundo das produções.
Pesado.
Se bem que… isto não é tão novidade assim. É só pegar qualquer making of recente para conferir. Se em 1956 Os Dez Mandamentos usaram mais de 14 mil figurantes para suas cenas épicas, em Ted Lasso a torcida nem era de verdade. Vendo as coisas pelo lado bom (estou tentando!) agora uma série fofa de comédia consegue fazer o que só o filme mais caro do ano podia se dar ao luxo. Que é o grande dilema da tecnologia: diminuir os custos aumenta o acesso a um recurso. É bom para a maioria, menos para quem está lá na ponta (e para o planeta, mas enfim). 200 anos atrás as pessoas comuns usavam o mesmo sapato a vida toda — provavelmente herdado de algum parente. Agora, criancinhas do sudeste asiático fabricam tênis que nunca serão usados. Não é maravilhoso?
A próxima camada é a do trabalho em si. Sempre encaramos o trabalho como um tipo de aluguel do corpo. Eu pago um valor para que você venha trabalhar na minha fazenda plantando soja, ou na minha fábrica apertando parafusos, porque sei quantos parafusos são apertados em média na fábrica e quanto isto representa do custo total para fabricar, digamos, um carro. Estou comprando seu tempo e seus músculos no que, não por acaso, é chamado de trabalho braçal. Eu uso seu braço para deixar aquele parafuso bem apertado e depois faço o que eu quiser com o carro, já que ele é meu.
O tipo de trabalho mais comum não é mais esse, é trabalharmos sentados em uma mesa, provavelmente olhando para uma tela. Ainda assim o modelo de remuneração continua sendo muito baseado em horas — e é aí que mora boa parte da briga pela volta aos escritórios. Eu estou pagando, quero você aqui, porque só assim posso garantir que você está trabalhando de verdade. O maior desespero dos patrões é que a pessoa não esteja fazendo nada — ou tendo outro(s) emprego(s). Não se paga pelo resultado, mas sim pelo tempo. (mas ai de você não entregar o resultado esperado…) Sendo que todo mundo sabe que quando o trabalho é feito com a cabeça nós nunca paramos de trabalhar, mesmo quando estamos descansando.
Os patrões sabem disso, especialmente os de Hollywood. É por isso que uma expressão anda muito na moda por lá. Propriedade intelectual, que é o que realmente se discute nestas negociações — e às vezes levam a greves. Olha o nome. Propriedade intelectual. Eu não comprei seu braço, comprei seu intelecto. Agora ele é propriedade minha. O que você produzir passa a ser meu, afinal de contas eu lhe paguei um salário justo. Em vez de um parafuso apertado, eu compro sua ideia. Assim como no caso do carro, eu faço com ela o que eu quiser, que não lhe pertence mais. Só que ao contrário de carros de metal, as ideias — especialmente na era digital — são infinitamente replicáveis, por um custo próximo de zero.
Esta relação foi resolvida em negociações anteriores e cada artista (seja quem escreve, dirige ou atua) recebe um percentual eterno sobre o que se fatura com a obra, enquanto ela faturar. É por isso que os atores de Friends hoje ganham mais dinheiro do que quando a série estava no ar. Tudo porque souberam negociar lá atrás.
Já nos nossos trabalhos de escritório a coisa não é bem assim. Se eu tenho uma boa ideia no trabalho, bem, eu não estava fazendo mais do que minha obrigação. É para isso que eu sou pago! Se a empresa faturar com essa minha ideia para sempre eu não tenho nada a ver com isso. No máximo eu ganho um bônus naquele ano. Mas "tudo bem", pelo menos eu sigo lá implementando a minha ideia e tentando ter outras. Enquanto não for mais barato eu ser substituído por alguém com metade da minha idade — mas este não é o assunto aqui hoje, pode deixar.
Agora chegou a IA, provando que o trabalhador é apenas um mal necessário para quem comanda o dinheiro. Se pudessem, não usavam — é só ver todas as grandes empresas da tal da gig economy, a uberização de tudo. Eu não tenho funcionários, apenas empreendedores individuais usuários da minha plataforma.
A nova esperança para eles é que eu possa apenas pagar para alguém treinar a IA e, pronto, não preciso mais de você. Nada de atraso, privada entupida, festa de fim de ano, reclamação ou sindicato. Principalmente sindicato. Se tudo der certo (para os patrões) esta vai ser a última greve de Hollywood. E o recado será dado ao resto do mundo.
Eu só preciso de um dia de trabalho seu. Entra aqui nesta máquina, eu vou escanear sua cara e pronto. Era só isso, obrigado. Eu lhe pago por hora, você fornece o material que eu preciso para replicar sua ideia ou feições e nunca mais preciso lidar com você. Desculpe, são apenas negócios.
Em um famoso artigo de 1968 para a revista Science, o ecologista Garrett Hardin trouxe à tona o conceito de "tragédia dos bens comuns". A ideia central é a de que nós, cerumanos, desejamos e competimos tanto por recursos que acabamos por destruí-los. Como um lago cheio de peixes, onde todo mundo tenta pescar o máximo possível porque "senão outro cara vai lá e pega tudo para ele". Ou, como disse o Hardin: "A ruína é o destino ao qual todos os homens se precipitam, cada um perseguindo seu próprio melhor interesse".
A menos que os benefícios da IA sejam repartidos pensando em todos — e não só em quem roda o sistema — vamos ter uma "tragédia dos comuns reversa". Não no sentido de não ser uma tragédia, mas de que ninguém vai ter peixe nenhum, exceto por um pequeno grupo que acha que está no direito de ser assim, afinal de contas comprou os terrenos em volta do lago.
Qual a diferença?
Você conhece a tecnologia do Torment Nexus?
Autor de ficção científica: No meu livro, inventei o Torment Nexus como um conto de advertência.
Empresa de tecnologia: Finalmente, criamos o Torment Nexus a partir do clássico romance de ficção científica "Não Criem O Torment Nexus".
Porque, sinceramente, várias tecnologias hoje em dia me fazem perguntar se estas pessoas consumiam scifi quando mais novas. A jornalista Jill Lepore fez um podcast inteiro em volta do conceito de muskismo, representado em Elon Musk, mas não só nele, onde estes homens ricos tentam viver o sonho tecnológico dos clássicos do gênero do meio do século passado, ignorando a parte de que muitos eram experimentos mentais do que não fazer.
Quando saiu a notícia sobre a tal proposta de escanear figurantes e manter estes direitos para todo o sempre a galerinha das xoxal redes (e lá do Melhor Discord™) apontou que ela tem seu próprio Torment Nexus: o filme de 2013 O Congresso Futurista, baseado em um conto de 1971 de Stanisław Lem. No filme, Robin Wright interpreta uma atriz chamada Robin Wright, que após ter estrelado em grandes sucessos como A Princesa Prometida e Forrest Gump está no "fim de carreira" (aos 44 anos) e recebe a proposta de vender sua imagem e semelhança para uma tecnologia parecida o suficiente com esta proposta aos figurantes. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.
O filme é uma grande viagem artística — em um bom e mau sentido. Questiona o valor de uma pessoa e o quanto ela é única e a partir do segundo ato vira um filme de animação em estilo retrô anos 1930 que critica a ideia que hoje nos querem vender como Metaverso, do Zuck ao Fortnite: a realidade será sua para moldar, você vai ser quem você quiser. Elvis, Muhammad Ali, Vênus de Botticelli, Jesus, ou a Robin Wright. Tudo é uma grande propriedade intelectual, é só comprar a skin.
Uma pergunta que é feita o tempo todo na história, algumas vezes explicitamente é "Qual a diferença?". Como quando o empresário de Robin está mostrando um filme digital feito por uma colega dela que já aceitou o acordo:
— Você acha que seria melhor para ela ou para você ficar presa em um set por seis semanas, como um cão? Beijando um ator com mau hálito?
— Não se incomoda de eles não terem falado com ela?
— E quando eles consultaram você? Você sempre foi a marionete deles. De todos eles, dos produtores, diretores. Eles te dizem o que fazer, como se comportar, como atuar, como sorrir, como amar. E eles te dão o subtexto de toda a porcaria fajuta que eles te transformaram. E quando você chega aos 35 anos, te dizem como parecer mais nova. Porque se você não fizer o que eles mandam, sem esse seu belo rostinho, você deixará de existir, pelo amor de Deus! Então qual é a diferença?
Robin defende que a diferença é a liberdade de escolha. Poder dizer não. Para mim este é o verdadeiro poder no mundo do trabalho: ter tanto que pode dizer não para as propostas indecentes. Normalmente não é uma questão de poder, mas de dinheiro. Coisa que ela não tem, porque seu filho está doente. Então ela aceita e logo sua versão digital vira personagem de uma gigante franquia de sci-fi, gênero que faz questão de dizer não gostar. piscadinha
A diferença do filme para a nossa realidade é que no mundo da Robin Wright fictícia cada decisão é individual. O dono do estúdio (maravilhosamente batizado de Miramount, lembrando que este filme foi produzido antes da queda de Harvey Weinstein) diz que se ela demorar a topar, todos os outros atores vão entrar na "nova era" e ela estará acabada. Durante a história vemos vários outros personagens dizendo o mesmo. "Eu não tinha escolha".
É claro que eu não sei como vão acabar as greves de Hollywood. Mas aqui, pelo menos, eles estão fazendo como os atores de Friends. Agindo como um grupo. O que quer que aconteça, a história está sendo escrita.
O Congresso Futurista está disponível na assinatura do Prime Video e para aluguel no YouTube e na Apple. Apenas dublado.
Por hoje é só
Cuidem de si, cuidem dos seus. Até a próxima.
crisdias