Como lidar com Neil Gaiman?
Dá para separar artista e obra? Uma edição especial do Clube de Cultura.
Se na newsletter de quarta-feira comentei sobre o tanto de coisa que aconteceu em 2025 em apenas 15 dias, eu não estava deixando todo o caso Neil Gaiman de fora.
Tomei conhecimento das denúncias de violência sexual ano passado, quando elas apareceram em um podcast. Até então ainda estávamos na fase do jogo “conflito de narrativas”. Então, semana passada, Lila Shapiro publicou na Vulture o que deve passar a ser exemplo de jornalismo no artigo “There is no safe word”.
É horrível. Gaiman usou sua posição de poder para abusar sexualmente de várias mulheres. É pesado. Ele reconhece os atos, mas diz que foram todos consensuais. Seus advogados chegaram a meter o argumento de “BDSM consensual”, um desrespeito a uma cultura que tem como base o consentimento. Não dá, Neil.
Nem lembro quando virei fã de Neil Gaiman. Para piorar as coisas, gosto muito das coisas que ele fala sobre o ofício de criar. Ganhei da Anna uma assinatura do Masterclass no dia em que anunciaram que ele era o mais novo mestre. Seu Tumblr é cheio de conselhos para quem deseja criar arte, sobre processo, sobre encontrar a sua voz… E agora? O que eu faço? O que nós fazemos?
Por isso, para abrir o Clube de Cultura do Boa Noite Internet em 2025, trago uma edição especial, um resumo comentado de um podcast que ouvi em 2023 sobre o (infelizmente) recorrente assunto “é possível separar o autor da obra?”. É um episódio do meu podcast favorito, The Gray Area, uma conversa conduzida pela jornalista Constance Grady — que recentemente escreveu um artigo analisando o aspecto “esquerdomacho” de Gaiman: feminista em público, abusador no privado — e a escritora Claire Dederer, autora do livro “Monsters: A Fan's Dilemma”, sem tradução no Brasil.
Dederer escreveu o livro entre 2016 e 2022. Ela reconhece que procrastinou mais do que deveria (quem nunca?) mas, sem querer, isso a permitiu ter no livro uma espécie de “jornada ideológica” ao ver o nascimento do movimento MeToo, o auge da cultura do cancelamento e as consequências disso durante a pandemia. Se tivesse sido terminado antes, ela conta na entrevista, a visão talvez fosse mais impiedosa.
Dederer teve a ideia para Monsters enquanto trabalhava em um livro autobiográfico que explorava sua vivência em uma cultura marcada por homens predatórios, além de suas próprias experiências com abusadores. Durante a pesquisa, ela se deparou com os detalhes do caso Roman Polanski — condenado por estuprar uma garota de 13 anos em 1977 e que fugiu dos EUA para não ser preso. Polanski é um diretor com obras que Dederer admirava profundamente, mas seus atos monstruosos a deixaram abalada. Esse conflito, entre a apreciação pela arte e a repulsa pelo artista, tornou-se a questão central que ela buscou investigar e os planos para o livro mudaram. Em 2017, ela escreveu o ensaio “What Do We Do with the Art of Monstrous Men?” para o Paris Review, que viralizou e mostrou que muitas pessoas também estavam lidando com essas questões.
Em 2017, o debate público se dividia entre duas posições extremas. De um lado, vozes que defendiam o descarte completo das obras — como a amiga de Dederer que, por ser uma sobrevivente de estupro, acreditava que ninguém deveria consumir arte feita por homens acusados de crimes sexuais. Do outro, uma postura que insistia na separação total entre arte e artista, exigindo que o público “julgasse estritamente pela estética” — uma visão que Dederer encontrou principalmente entre críticos homens, que a acusavam de “não ser boa o suficiente” quando ela expressava desconforto ao assistir Manhattan.
A discussão sobre separar artista e obra sempre esbarra na questão do “gênio” — uma figura que, por sua capacidade criativa excepcional, deveria ter liberdade total para seguir seus impulsos. Se você acompanha o podcast do Boa Noite Internet sabe minha opinião: não existe genialidade.
A lógica do “gênio” diz que se um artista responde a forças maiores que ele quando cria, se ele é apenas um canal para algo transcendente ao pintar Guernica ou compor Kind of Blue, então todos os seus impulsos precisam ser protegidos, aceitos e até reverenciados. Dederer cita inspiração no conceito de “monstro da arte” de Jenny Offill — aquele que pode se dedicar exclusivamente à arte porque tem sempre alguém (geralmente uma esposa) cuidando de todo o resto. O artista-gênio masculino não precisa se preocupar com a vida cotidiana, com relacionamentos, com responsabilidades mundanas, com lavar as cuecas. O gênio pode tudo, pois nos dá o fruto da sua genialidade. Se alguém se feriu no caminho, aceitemos o preço.
Mas Dederer vai além: não é que a sociedade simplesmente tenha decidido dar esse passe livre a artistas como Picasso e Hemingway. Eles próprios ajudaram a forjar essa imagem do gênio masculino livre de amarras morais. Como primeiros artistas da era da mídia de massa, eram excelentes em construir personas vendáveis, em fazer sua vida pessoal tão sedutora quanto sua arte. O comportamento destrutivo não era um efeito colateral da genialidade, mas parte intencional do espetáculo. Esta ideia do artista que precisa viver seus impulsos sem restrições para criar encontrou sua expressão máxima no rock’n’roll, onde a música às vezes parecia apenas um pretexto para sustentar o estilo de vida — Dederer cita o Mötley Crüe como exemplo perfeito desse esvaziamento.
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