Como a democracia foi hackeada
Candidatos e jornalistas jogam esportes diferentes e quem perde somos nós.
A política nada mais é do que o show business para pessoas feias.
— Jay Leno
Vendo os comentários sobre o Roda Viva com um candidato a prefeito de São Paulo ontem, fiquei aqui imaginando uma Copa do Mundo de futebol diferente. Porque é assim que a minha cabeça funciona.
Um belo dia, estádio lotado, um novo time entra em campo, uma seleção que ninguém conhecia antes. O jogo mal começa e um de seus jogadores simplesmente agarra a bola com as mãos, corre até o gol e marca. Os jogadores adversários e o árbitro ficam chocados. O gol é anulado, nem precisa de VAR, mas o novo time não para por aí. Eles seguem fazendo faltas, colocando 20 jogadores em campo, 3 bolas ao mesmo tempo, cinco goleiros. É um caos total. Dá até para imaginar o Galvão gritando “Isto não é futebooool!” ou o Craque Neto dizendo que eles estão de brincadeira.
A partida termina em gritaria e confusão, mas… o novo time vira sensação mundial. Eles aparecem em todos os canais de TV, são chamados para entrevistas e assinam contratos milionários. Os jogadores das outras seleções, perplexos, ficam dizendo uns para os outros que pelo menos eles são os campeões da Copa.
É absurdo, eu sei, mas foi a metáfora que me passou pela cabeça para o cenário político atual. Os jornalistas e políticos tradicionais são como os times que seguem as regras do futebol — eles operam dentro de um conjunto estabelecido de normas e expectativas. A verdade, para eles, é como a regra de não pegar a bola com as mãos no futebol: fundamental e inviolável.
Então surgem figuras como Jair Bolsonaro, Trump, Pablo Marçal e até Elon Musk. Eles são o tal novo time que ignora as regras. Fazem declarações sem provas, lançam insinuações, atacam adversários e propagam desinformação. Seu objetivo não é “vencer a entrevista”, mas dominar a atenção pública e moldar a narrativa a seu favor. A gente literalmente chama isso de “jogar para a torcida”.
Esta dinâmica não chega a ser novidade. O teórico da mídia americano Neil Postman escreveu nos anos 1980 sobre a transformação da mídia em entretenimento. Postman argumentava, décadas antes da internet chegar para ficar, que a televisão mudou fundamentalmente nossa relação com a informação. Deixou-se de buscar a verdade ou o conhecimento para focar em capturar e manter a atenção do público. Os políticos populistas entenderam essa mudança e a estão explorando ao máximo, até hoje — é o que eu chamo de “hackear a democracia”.
Postman fala disso no seu livro “Amusing Ourselves to Death” (livremente, Divertindo-nos até a morte), onde mostrou como os debates políticos televisionados se tornaram mais uma questão de aparência e frases de efeito do que de substância política. Ele dá o exemplo do debate Kennedy-Nixon de 1960, onde a aparência televisiva “galã” de Kennedy foi crucial para sua vitória — ou o dado não muy científico de que o candidato mais alto vence as eleições presidenciais americanas na era da televisão. (As únicas exceções desde 1976 são George W. Bush, que em 2004 venceu John Kerry sendo 1 cm mais baixo, e Joe Biden, 7 cm mais baixo que Donald Trump).
Postman também observou mudanças na educação, com programas como “Vila Sésamo” (que eu adorava quando era criança) transformando o aprendizado em entretenimento, e no jornalismo, com noticiários adotando formatos mais próximos de shows de variedades. Essas mudanças, segundo ele, mudaram o foco da “informação” para a “diversão”, levando a uma diminuição da capacidade de concentração e análise crítica do público, preparando o terreno para a ascensão de uma política baseada mais em apelo emocional do que em argumentação racional.
“Candidato, vamos falar das suas propostas” — diz o jornalista nervoso, quando a verdade é que o público não quer saber de propostas, quer votar porque “esse cara parece legal”.
O resultado é um jogo político onde as regras tradicionais de engajamento — baseadas em fatos, debate racional e respeito mútuo — foram jogadas para escanteio (ok, desculpe o trocadilho) em favor do espetáculo e da provocação. Como no meu jogo de futebol imaginário, quem ainda joga pelas antigas regras perde o jogo e depois fica reclamando que não valeu. Ou, pior, comemora que venceu porque o outro time foi desclassificado. Este pessoal está jogando o jogo errado, mas se agarra a ele por achar que é o único jogo que importa.
Se eu estivesse em um destes programas de entrevista, lansaria a braba que todos estes milhões que Marçal diz ter ganho “vendendo curso” são, na verdade, lavagem de dinheiro. Mas como jornalista eu precisaria de provas, que eu não tenho. Ele pode falar sem apresentar provas, eu não. Ele pode pegar a bola com a mão, porque não respeita o esporte. Se um jornalista afirma sem provas, o que vai virar o futebol? Ops.
Foi assim que hackearam a democracia. Ao contrário do futebol, que tem órgãos internacionais controlando as regras e campeonatos — e até mesmo as eleições, com suas leis e tribunais específicos — a única restrição dos debates e entrevistas políticos é a relação e reputação que os candidatos têm com os jornalistas.
Mas é aqui onde está a raiz do problema (na verdade, duas).
Primeiro, os candidatos de direita não respeitam os jornalistas. Não importa se “vou ficar mal” com a imprensa. Eles não estão ali para serem amigos dos entrevistadores, porque não precisam disso agora que têm canais de comunicação diretamente com o público, nas “redes sociais” (que deixaram de ser sociais há tempos). Ainda assim, o que os jornalistas deveriam fazer é deixar de convidar para seus programas candidatos que não respeitam as regras da verdade e da democracia. É o que a Fifa faria. Mas não dá.
Este é o segundo problema. Jornalismo é falar, entrevistar, publicar. A notícia precisa ser dada, a informação deve circular. Não convidar um candidato ao debate é como pedir para um peixe não engolir água para pegar oxigênio. “Não publicar” é não respirar. A grade de programação precisa ser preenchida, os clicks precisam ser gerados.
Se a democracia morrer no processo? Bom, eu só estava fazendo meu trabalho…
A espetacularização da campanha política não é nenhuma novidade. Mas a afronta explícita e irresponsável tem sido uma característica das eleições recentes. A falta de punição, pelo contrário a bonificação, de atitudes desrespeitosas mostra que o jogo precisa de novas regras para acatar ou bloquear as estratégias usadas.
Juro que li este texto esperando que fosse sugerido uma solução para resolver essa complexidade. Triste chegar ao fim e me sentir mais perdido do que quando comecei. rsrsrsrs.