Camus versus Graeber: um debate holográfico (e absurdo)
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Se você vai dizer a verdade para as pessoas, seja engraçado ou elas vão te matar.
— Billy Wilder
Já que estamos em semana de eleição municipal, resolvi colocar em prática uma ideia de uso da IA generativa que venho fermentando na cabeça há algum tempo, um debate imaginário entre dois pensadores que se descreviam como anarquistas: o filósofo franco-argelino Albert Camus e o antropólogo americano David Graeber.
Albert Camus (1913-1960) não se limitava apenas em “ser um pensador” — ele participou ativamente da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial e depois se envolveu em debates acalorados sobre política e sociedade. Em 1942, publicou suas duas obras-primas: o romance “O estrangeiro” e “O mito de Sísifo”, um ensaio sobre um obscuro personagem da mitologia grega condenado pelos deuses pelo crime de “ser astuto demais” a rolar uma pedra montanha acima eternamente — quando a pedra chegava ao topo ela rolava de volta, fazendo com que o esforço de Sísifo tivesse sido em vão. Vivendo em uma Europa devastada pela guerra, onde o absurdo da existência humana se mostrava mais evidente do que nunca, Camus olhou para esse cenário desolador e, em vez de desespero, encontrou uma estranha forma de esperança. Para Camus, a verdadeira liberdade e dignidade de Sísifo residem em sua consciência do absurdo e na escolha de continuar, transformando sua punição em um ato de rebelião silenciosa contra os deuses e o destino.
Já David Graeber (1961-2020) foi um antropólogo americano e ativista que não se contentava em apenas estudar a sociedade — ele queria mudá-la. Conhecido por seu papel no movimento Occupy Wall Street, Graeber publicou em 2018 “Bullshit Jobs: A Theory”, um livro que questiona o absurdo de, em uma era de avanços tecnológicos sem precedentes, tantos de nós ainda passamos nossas vidas fazendo trabalhos que parecem não ter propósito real. Graeber olhou para os escritórios lotados e as intermináveis reuniões corporativas do mundo moderno e ultra-capitalista e, em vez de eficiência, viu um sistema que criava trabalho “por criar”, o tipo de coisa normalmente associada à burocracia soviética.
“Bullshit jobs” é um texto que mora em um triplex na minha cabeça até hoje e já foi até tema de um Boa Noite Internet na primeira temporada.
São duas visões de mundo que acho interessantes, mas que, ao mesmo tempo, achei que não se encaixavam. Camus, pensei, de certa maneira defendia que #somostodossísifo
e devemos dar quase que uma risada ao ver nossas pedras descendo morro abaixo no fim do quarter. Já Graeber não aceita esta condição e dá um nome agressivo: bullshit. Nossos trabalhos são sem sentido e, pior, sabemos disso — mas preferimos fingir que temos um importante papel na sociedade com medo de perder os benefícios financeiros que estes empregos trazem.
E se… eu usasse a IA para criar uma conversa entre eles e ver o que saía? A obra dos dois foi fartamente estudada e analisada em publicações, então é razoável pensar que as IAs generativas teriam conhecimento suficiente para conhecer não só suas ideias, mas também o que outras pessoas disseram sobre o assunto.
Ao mesmo tempo, IAs como ChatGPT popularizaram a palavra alucinação. Seria leviano dizer que as palavras que você lê a seguir representam fielmente o que os dois pensavam. O que temos aqui é apenas um holograma desbotado de dois pensadores incríveis. Um sacrilégio filosófico que, ainda assim, decidi levar adiante porque o que realmente estou buscando é onde estas perguntas e respostas podem levar nosso pensamento. Não preciso dizer que as palavras abaixo não refletem a opinião nem de Albert Camus, nem de David Graeber. Considere esta “conversa” um convite para ler a obra dos dois.
Esta edição também é um lembrete de que as ideias florescem no debate. Vivemos em um mundo que encara este tipo de conversa (holográfica ou não) como uma disputa onde é preciso haver um vencedor e, portanto, devemos ter nosso “lado”. Em 2021 Graeber escreveu um livro de quase 700 páginas refutando a proposição de Yuval Noah Harari em Sapiens (e de outros autores) de que vivíamos em tribos de caçadores coletores e ao passar pela revolução agrícola criamos as bases da sociedade hierárquica em que vivemos hoje. (Esta visão também já foi tema aqui do podcast.) Desde então, sempre que cito Harari (qualquer livro dele) ouço alguém dizer que ele foi “desmentido”, que de certa maneira ele foi “cancelado pela academia” e que citar Harari seria cientificamente errado.
Não é assim que nem a ciência e muito menos a filosofia funciona. Algumas das ideias mais impactantes da filosofia ocidental nasceram do debate público de ideias, em forma de artigos, cartas e livros. O próprio Camus tinha como “adversário” seu amigo Jean-Paul Sartre, que não concordava com o absurdismo de Camus. Um texto de David Hume sobre conhecimento casual fez Immanuel Kant “despertar de seu sono dogmático”. Sorte a nossa de poder entender diferentes pontos de vista e não apenas tirar nossas próprias conclusões, prosseguir com o debate se tivermos coragem.
Por isso já adianto que nosso debate de mentira não vai ter um “vencedor”. Quer dizer… a vitória é do pensamento crítico.
Para este debate usei o Claude, uma IA de texto que (sabendo usar) alucina menos que o ChatGPT.
E, finalmente, esta edição está liberada sem paywall por tempo limitado. Isto só é possível porque pessoas maravilhosas apoiam meu trabalho. Se couber no seu orçamento (é menos do que uma coquinha por semana), considere assinar o Boa Noite Internet.
Chega de preâmbulo, vamos ao debate!
Cris: Camus, bem-vindo ao nosso debate holográfico. Por que você resolveu escrever este ensaio sobre um personagem da mitologia grega que empurra uma pedra montanha acima, uma imagem forte de sofrimento e punição?
Camus: Obrigado pelo convite, Cris. É curioso participar deste debate holográfico — talvez seja mais um exemplo do absurdo que permeia nossa existência. Escolhi o mito de Sísifo porque ele representa a condição humana: nossa busca por sentido num universo indiferente. Sísifo, condenado a rolar eternamente uma pedra montanha acima, espelha nossa própria existência repetitiva. Mas vejo Sísifo como um herói. No momento em que desce a montanha, ele tem uma escolha: desesperar-se ou aceitar sua tarefa, encontrando significado na persistência. É nessa consciência que ele se torna livre. Não glorificamos o sofrimento, mas reconhecemos que é através do confronto com o absurdo que encontramos nossa dignidade. Essa perspectiva é crucial num mundo devastado pela guerra, onde as certezas desapareceram.
Cris: Por que você acredita que a vida é um absurdo?
Camus: A vida é um absurdo porque existe uma contradição fundamental entre nossa busca incessante por significado e a aparente falta de sentido do universo. Nós, seres humanos, ansiamos por clareza, por respostas definitivas sobre nossa existência. Queremos saber por que estamos aqui, qual é o propósito de tudo isso.
Mas o universo permanece em silêncio diante de nossas perguntas. Não há uma resposta clara, um sentido predefinido para nossa existência. Nascemos, vivemos, morremos, e o mundo continua girando, indiferente.
Esse descompasso entre nosso desejo de compreensão e a ausência de respostas claras é o que chamo de absurdo. Não é uma condenação da vida, mas um reconhecimento de nossa condição. É a partir dessa consciência do absurdo que podemos começar a construir um significado próprio, mesmo que provisório.
Cris: Muito obrigado. Professor Graeber, bem-vindo ao nosso debate imaginário. Antes de mais nada queria dizer que por sua culpa nunca mais olhei meus empregos do mesmo jeito. Agora vejo tudo pela lente do “bullshit job”. O que o levou a escrever o artigo original, que depois virou livro?
Graeber: Muito obrigado pelo convite, Cris. É fascinante poder participar deste debate, mesmo que imaginário — uma forma de comunicação que, ironicamente, poderia ser vista como um tipo muito avançado de “bullshit job” em minha época. Fico feliz em saber que meu trabalho teve esse impacto na sua perspectiva. É exatamente isso que eu esperava provocar: uma reavaliação crítica do que consideramos “trabalho”.
O que me levou a escrever sobre “bullshit jobs” foi uma observação aparentemente simples, mas profundamente perturbadora: em uma era de avanços tecnológicos sem precedentes, onde deveríamos estar trabalhando menos, muitas pessoas passam suas vidas em empregos que elas próprias consideram desnecessários ou sem sentido.
Tudo começou com o ensaio que você citou, escrito após notar um padrão em conversas casuais. Pessoas em festas, ao serem perguntadas sobre suas profissões, frequentemente descreviam seus trabalhos como inúteis ou sem propósito real. Isso me intrigou. Por que nossa sociedade, supostamente eficiente, estaria criando e mantendo esses empregos?
Percebi que esse fenômeno revelava algo fundamental sobre nossa estrutura social e econômica. Não se tratava apenas de ineficiência, mas de um sistema que valoriza o trabalho por si só, independentemente de sua utilidade real. Isso levanta questões cruciais sobre o sentido do trabalho em nossas vidas e como organizamos nossa sociedade.
Cris: Ótimo, mas aí chegamos ao motivo de eu ter convidado vocês dois para este debate. Para mim, Sísifo tem o maior “bullshit job” de todos os tempos: empurrar uma pedra por uma ladeira em uma montanha sem conseguir levá-la até o outro lado. Ela, então, rola morro abaixo e Sísifo precisa começar tudo novamente. Seu trabalho é insignificante. Mas você, Camus, não vê isso como punição. Você pensa que quando alguém hoje, em 2024, chega no seu “bullshit job” deve apenas rir do absurdo sem considerar aquilo um fardo?
Camus: Sua interpretação é interessante, mas precisamos ter cuidado com comparações diretas entre o mito e nossa realidade cotidiana. O trabalho de Sísifo é, de fato, o epítome do que poderíamos chamar de tarefa sem sentido aparente. No entanto, a questão central não é se o trabalho em si tem um propósito externo, mas como o indivíduo se relaciona com sua tarefa.
Quando falo que Sísifo não deve ser visto apenas como uma figura trágica, não estou dizendo que devemos aceitar passivamente trabalhos sem sentido. O ponto crucial é a consciência e a atitude que adotamos diante de nossa situação.
Em 2024, alguém em um “bullshit job” não deve simplesmente rir e aceitar. A consciência do absurdo deve ser um catalisador para a reflexão e, potencialmente, para a mudança. O riso pode ser uma resposta, sim, mas um riso de reconhecimento, não de resignação.
A verdadeira questão é: como podemos, diante dessa consciência, criar significado em nossas vidas? Às vezes, isso pode significar buscar mudanças no trabalho. Outras vezes, pode envolver encontrar propósito em outros aspectos da vida. O importante é manter nossa liberdade de escolha e nossa dignidade, mesmo diante do absurdo.
Graeber: A analogia entre Sísifo e os “bullshit jobs” é fascinante, mas preciso discordar em alguns pontos da interpretação de Camus.
Sísifo, de fato, representa o epítome do trabalho sem sentido. Mas há uma diferença crucial: Sísifo foi condenado pelos deuses, enquanto os “bullshit jobs” são uma criação de nossa própria sociedade. Não são uma condição inevitável da existência, mas o resultado de escolhas econômicas e sociais que fizemos coletivamente.
Concordo com Camus que a consciência é fundamental. Mas onde ele vê uma oportunidade para a afirmação existencial individual, eu vejo um chamado à ação coletiva. O reconhecimento do absurdo em nossos trabalhos não deveria nos levar apenas à aceitação filosófica, mas à questão: por que criamos um sistema que valoriza a ocupação pela ocupação, mesmo quando é claramente inútil?
Os “bullshit jobs” não são apenas um fardo individual, são um sintoma de uma disfunção social mais ampla. Eles representam um desperdício massivo de potencial humano e uma fonte de infelicidade generalizada.
Então, não, não acho que devemos apenas rir do absurdo. Devemos questionar, desafiar e buscar mudanças. A verdadeira liberdade não está em aceitar o absurdo, mas em trabalhar para criar um mundo onde o trabalho tenha um propósito real e onde as pessoas possam dedicar suas vidas a atividades genuinamente significativas.
Cris: Camus, você viu de perto os horrores da guerra. Como isso influenciou sua visão sobre Sísifo? Devemos apenas nos resignar com o absurdo do conflito? Afinal de contas você tentou se alistar no exército e, não sendo aceito, foi para a resistência francesa.
Camus: Os horrores da guerra, de fato, tiveram um impacto profundo na minha filosofia, mas não no sentido de resignação. Pelo contrário, reforçaram minha convicção de que devemos agir diante do absurdo, não apenas o aceitar passivamente.
Minha visão sobre Sísifo não é de resignação, mas de rebelião. Diante do absurdo — seja ele a guerra ou um trabalho sem sentido — temos a escolha de como responder. Minha participação na Resistência foi uma expressão dessa escolha: confrontado com o absurdo da ocupação nazista, decidi agir.
O mito de Sísifo nos ensina que, mesmo em situações aparentemente sem esperança, ainda temos a liberdade de escolher nossa atitude. No caso da guerra, isso significa resistir à injustiça e lutar pela liberdade, mesmo quando as chances parecem mínimas.
Portanto, não devemos nos resignar com o absurdo do conflito ou de qualquer outra situação opressiva. Devemos reconhecê-lo e, então, escolher como agir diante dele. A verdadeira coragem está em continuar lutando por um mundo melhor, mesmo sabendo que a “pedra” pode rolar montanha abaixo novamente.
Cris: Então Sísifo não deveria se rebelar contra os deuses?
Camus: Sua pergunta revela uma interpretação interessante do mito. A rebelião de Sísifo não está em desafiar abertamente os deuses, mas em como ele enfrenta sua situação. Sua verdadeira liberdade emerge no momento em que ele aceita seu destino, não por submissão, mas por escolha consciente.
Imagine Sísifo descendo a montanha após ver sua pedra rolar mais uma vez. Nesse momento, ele tem uma clareza que os próprios deuses não possuem. Ele compreende a totalidade de seu destino e, ao aceitá-lo, transcende-o.
Esta forma de rebelião é mais sutil e, paradoxalmente, mais poderosa. Ela não busca mudar as circunstâncias externas, mas transforma a relação do indivíduo com essas circunstâncias. Sísifo “vence” os deuses não escapando de sua punição, mas encontrando significado dentro dela.
Na vida real, isso não significa aceitar passivamente situações opressivas. Pelo contrário, essa consciência deve nos impulsionar a agir, a buscar mudanças quando possível. A lição de Sísifo é que, mesmo nas situações mais desesperadoras, temos a liberdade de escolher nossa atitude e, através dessa escolha, manter nossa dignidade.
Cris: Graeber, a maioria dos trabalhadores está em uma condição parecida com a de Sísifo. Precisam pagar boletos e por isso não podem simplesmente se rebelar contra seus empregos. Não deveríamos apenas aceitar nossos “bullshit jobs” e gastar o salário para fazer coisas mais significativas, fora do trabalho?
Graeber: Essa proposta de simplesmente aceitar “bullshit jobs” é compreensível, mas fundamentalmente equivocada. Ela ignora o impacto profundo que o trabalho tem em nossas vidas e na sociedade como um todo.
Considere o seguinte: o trabalho não é apenas uma fonte de renda, mas também de identidade, propósito e conexão social. Aceitar um trabalho sem sentido afeta não só nossas horas no escritório, mas nossa saúde mental, nossas relações e nossa visão de mundo.
Além disso, essa abordagem perpetua um sistema econômico disfuncional. Os “bullshit jobs” não são acidentes, mas sintomas de uma economia que valoriza a ocupação acima da produtividade real. Ao aceitá-los passivamente, tornamo-nos cúmplices de nossa própria exploração.
Em vez disso, proponho uma mudança de perspectiva. E se, coletivamente, começássemos a questionar a necessidade desses empregos? E se começássemos a pensar em trabalhos significativos como um direito? Isso poderia levar a uma reestruturação radical de nossa economia, focada em criar valor real para a sociedade.
A verdadeira liberdade não está em aceitar condições opressivas e buscar significado nas margens, mas em trabalhar ativamente para criar um mundo onde o trabalho em si seja uma fonte de realização e propósito.
Cris: Graeber, acho que a parte que mais me impactou em “bullshit jobs” é quando você aponta que os trabalhos considerados “essenciais” — como motoristas de ônibus ou garis — costumam ser os que pagam menos. Ao mesmo tempo, se publicitários ou analistas financeiros fizessem uma greve ninguém ia se importar. Por que temos esta desconexão entre valor social e salário?
Graeber: Essa desconexão entre valor social e remuneração é, de fato, um dos aspectos mais perturbadores e reveladores de nossa economia atual. É uma contradição que expõe as falhas fundamentais em como estruturamos o trabalho e o valor em nossa sociedade.
Há várias razões para essa disparidade:
Primeiro, nossa economia tende a recompensar a geração de lucro acima do benefício social. Um analista financeiro pode não produzir nada tangível, mas se ele aumenta os lucros de uma empresa, é visto como valioso pelo sistema.
Segundo, há uma questão de poder e negociação. Trabalhadores em setores como finanças ou publicidade geralmente têm mais poder de barganha devido à percepção de suas habilidades como “escassas” ou “especializadas”.
Terceiro, existe um preconceito histórico contra o trabalho manual ou de “cuidado”. Quanto mais um trabalho beneficia diretamente outras pessoas, menos ele tende a ser pago.
Por fim, muitos trabalhos essenciais são vistos como “dados” — esperamos que alguém colete nosso lixo ou dirija nossos ônibus, e essa expectativa leva a uma desvalorização desses serviços.
Esta desconexão não é natural ou inevitável. É o resultado de escolhas sociais e econômicas que fizemos coletivamente e que podemos, portanto, mudar. Reconhecer esse paradoxo é o primeiro passo para repensar como valorizamos o trabalho em nossa sociedade.
Cris: Agora uma pergunta para os dois. Infelizmente vocês deixaram o mundo antes da explosão das tecnologias de IA como ChatGPT e Claude. Mas aqui estamos, usando estas tecnologias, para tentar entender como vocês pensam. Como a possibilidade da “inteligência artificial geral” — que, dizem, vai eliminar a necessidade de empregos — se conecta com a visão de vida e trabalho de vocês? Devemos ficar preocupados ou aliviados?
Camus: A questão da Inteligência Artificial Geral (IAG) acrescenta uma nova dimensão ao absurdo da condição humana. Por um lado, ela promete libertar-nos de trabalhos tediosos e sem sentido — uma espécie de Sísifo mecânico que poderia rolar nossa pedra por nós. Por outro, ela nos confronta com questões profundas sobre nossa própria existência e propósito.
A perspectiva de uma IAG não elimina o absurdo, apenas o transforma. Se máquinas podem fazer tudo, qual é nosso papel? Esta é uma nova forma do confronto entre nosso desejo por significado e um universo que não oferece respostas prontas.
Não devemos nem temer, nem celebrar cegamente essa possibilidade. Devemos encará-la com a mesma lucidez e coragem com que enfrentamos qualquer absurdo. A questão central permanece: como criamos significado em nossas vidas?
A IAG pode nos libertar para buscar esse significado de novas formas, mas a responsabilidade de criar esse significado ainda é nossa. Seja trabalhando ao lado de máquinas ou encontrando novos caminhos para a criatividade e o propósito humano, o desafio é manter nossa dignidade e liberdade de escolha.
Graeber: A possibilidade de uma Inteligência Artificial Geral é fascinante e potencialmente transformadora, mas também levanta questões críticas sobre como estruturamos nossa sociedade e economia.
Por um lado, a ideia de eliminar empregos desnecessários através da automação parece alinhada com minha crítica aos “bullshit jobs”. Se pudéssemos liberar as pessoas de trabalhos sem sentido, isso poderia ser revolucionário.
No entanto, a questão crucial é: quem se beneficia dessa automação? Se a IAG simplesmente concentrar mais poder e riqueza nas mãos de poucos, enquanto deixa a maioria sem meios de subsistência, teremos apenas trocado um problema por outro.
O verdadeiro desafio é reimaginar nossa relação com o trabalho e o valor. Precisamos de um novo contrato social que não dependa de empregos desnecessários para distribuir recursos. Isso poderia envolver ideias como renda básica universal ou redução drástica da jornada de trabalho.
A IAG nos oferece uma oportunidade única de repensar fundamentalmente o que valorizamos como sociedade. Podemos usá-la para criar um mundo onde as pessoas são livres para perseguir atividades verdadeiramente significativas, em vez de serem forçadas a trabalhos sem sentido apenas para sobreviver.
Não devemos ficar paralisados de medo nem excessivamente otimistas. Devemos ver a IAG como uma ferramenta que podemos moldar para servir a objetivos humanos mais amplos. O futuro não é predeterminado — cabe a nós decidirmos coletivamente como queremos usar essa tecnologia para criar uma sociedade mais justa e significativa.
Cris: Estamos chegando perto do fim. Camus, quais conselhos você daria para quem se vê hoje em um “bullshit job”?
Camus: Para aqueles em um “bullshit job”, ofereço estas reflexões:
Primeiramente, reconheçam que esta situação não define seu valor como ser humano. Sua essência transcende qualquer função profissional.
Busquem momentos de autenticidade, mesmo nas tarefas mais mundanas. Às vezes, um gesto de gentileza com um colega ou um momento de criatividade inesperada pode iluminar o absurdo.
Considerem sua situação como um ponto de partida para autoconhecimento. O que esse descontentamento revela sobre seus valores e aspirações? Entender que seu trabalho parece sem sentido não é derrota, é lucidez.
Explorem outras esferas da vida. Talvez seu trabalho atual seja apenas um meio para nutrir paixões mais significativas fora dele.
Por fim, lembrem-se: o absurdo não é uma sentença, mas um convite à liberdade. Cada dia é uma nova oportunidade de escolher como vocês encaram sua realidade e de buscar uma existência mais autêntica.
Cris: Adorei o tom otimista e com esperança. E você, Graeber, quais suas considerações finais?
Graeber: Obrigado pela oportunidade de compartilhar essas ideias. Minhas considerações finais são um convite à ação e à imaginação coletiva.
Primeiramente, questionem as narrativas dominantes sobre trabalho e sucesso. Por que aceitamos um sistema que valoriza a ocupação acima do benefício real?
Explorem alternativas. Movimentos como a semana de quatro dias, o cooperativismo e a economia solidária oferecem vislumbres de formas diferentes de organizar o trabalho.
Valorizem o impacto social acima do status. Como podemos reorientar nossa economia para recompensar adequadamente o trabalho que realmente importa?
Cultivem solidariedade. Muitas vezes, a insatisfação com “bullshit jobs” é vivida em silêncio e isolamento. Compartilhem suas experiências e apoiem-se mutuamente.
Por fim, rejeitem a noção de que o sistema atual é inevitável. A história está repleta de momentos em que as pessoas desafiaram e transformaram radicalmente as estruturas de poder. O que parece utópico hoje pode ser a realidade de amanhã se tivermos a coragem de desafiar o status quo e agir coletivamente. Não estamos condenados a um mundo de “bullshit jobs” — podemos criar algo muito melhor se nos organizarmos e lutarmos por isso.
Não se trata apenas de criticar o sistema atual, mas de imaginar e construir ativamente um futuro onde o trabalho enriqueça nossas vidas e comunidades.
Por hoje é só
Espero que você tenha curtido essa loucurinha cibernética. Se gostou, diz aí quem deveria participar de futuras edições destes debates holográficos.
Cuidem de si, cuidem dos seus. Até a próxima.
crisdias
O fato de termos uma ferramenta como essa disponível em nossas mãos para reimaginar um cenário impossível desses nos dá esperança. Esperança de que mesmo uma potencial arma do capitalismo contra as pessoas ainda pode fornecer substrato para nascimento de ideias realmente libertadoras.