A cultura do "tá foda, man"
Se reclamar fosse esporte olímpico, agora eu estaria em Paris.
Outro dia estávamos em uma cena digna de série descolada jovem ou videoclipe indie. Sentados em volta de uma farta mesa de café da manhã, pessoas de diferentes idades e profissões, jogando conversa fora. Na memória a cena toca com a cor meio desbotada e uns fachos de luz entrando pela janela.
Inevitavelmente o papo caiu em trabalho. Afinal de contas, estamos em 2024. E lá fomos nós reclamar de como está tudo difícil, ninguém entende nada, paga-se mal — e não importava se a pessoa era funcionária ou empreendedora. Tá tudo ruim, odeio meu trabalho. “E digo mais! São Paulo é um moedor de carne, um dia largo tudo, essa cidade me oprime.” Todo mundo foi contando seu plano de fuga “afinal de contas, hoje em dia meu trabalho é quase todo remoto”.
Em certo ponto, alguém vira para uma das pessoas da mesa — que é sempre calma e ponderada e por isso fala pouco — e animadamente pergunta: “E você? Se vê um dia saindo de São Paulo?”
Ela parou, pensou, disse que o trabalho dela não é tão remoto assim e mudar seria complicado. Foi então que falou o absurdo dos absurdos. “Eu gosto de São Paulo e adoro meu trabalho.”
😱
Começou a descrever como trabalhou a carreira toda no mesmo lugar, mais de uma década, hoje tem um bom cargo, entendeu seu papel no sistema.
Até hoje o que eu mais lembro da conversa é que ela tinha um leve tom de… vergonha? Uma coisa meio “desculpa gostar do meu trabalho e não ser parte da brincadeira de insatisfação com a vida”. Lembro dos sorrisos meio amarelados de alguns, o choque de outros (acho que eu era desse grupo) e até uma certa tentativa de “mas, assim, você não odeia nada, nada?” E também de quando falo do meu trabalho e sinto uma necessidade de dizer que “adoro, maaaaas, olha só…”.
Nenhuma daquelas pessoas ali na mesa está passando por nenhum grande aperto, nem é oprimido no trabalho. Não tá péssimo. Mas ainda assim entramos na dinâmica de reclamar do trabalho como… mecanismo de afeto? O “tá foda, mein” como união de grupo? Culpa católica? Culpa branca?
O que eu quero dizer com tudo isso? Não sei. Se você está em busca de respostas, assinou a newsletter errada. Eu só acordei hoje com vontade de contar desse dia. Até porque, algumas horas antes, uma das outras pessoas na mesa tinha alertado. “Cuidado! Tudo o que você falar vira história pro Cris Dias.”
"Is this pauta" feelings